28.8.25

A evidência

O problema é que, entre nós, como no seio de qualquer cultura que tenha sido vigiada por cinquenta anos de censura, a evidência não teve vida fácil.

Luís Mourão, Um romance de impoder. A paragem da História na ficção portuguesa contemporânea

Variações sobre a vergonha

A quem chamas mau? — Àquele que quer envergonhar sempre.
Que encontras de mais humano? — Poupar a vergonha a alguém.
Qual é a marca da liberdade realizada? — Não mais corar de si próprio.

Nietzsche, A gaia ciência

22.8.25

Férias ao sol

A cheap holiday in other people's misery! 
I don't wanna holiday in the sun 
I wanna go to new Belsen 
I wanna see some history 
'Cause now I got a reasonable economy


18.8.25

A disjunção emocional e a má-fé pela mão dos outros

E se me sentir novamente em condições na segunda-feira [para ir novamente como voluntária para o campo de concentração de Westerbork]? Nesse caso vou ter com o Neuberg e digo-lhe no meu jeito encantador — sim, sim, já estou a ver a cena, faço um sorriso com o meu novo dente de porcelana com uma pequena cercadura de ouro — «Doutor, venho cá para uma conversa entre amigos, olhe, as coisas estão neste pé e eu gostaria tanto de ir, acha que é sensato?» E já sei de antemão que ele vai dizer «sim», porque eu vou fazer com que ele diga sim, tão sugestivamente lhe vou fazer a pergunta. Vou fazer com que ele dê a resposta que deveras quero ouvir. É assim que as pessoas vivem, portanto. Utilizam os outros para se convencerem a si próprias de algo em que não acreditam no fundo do coração. Uma pessoa procura então nos outros um instrumento para abafar a própria voz interior. Escutasse cada um a sua voz interior um pouco mais, tentasse cada um deixar ressoar a voz dentro de si, e haveria muito menos caos.

Etty Hillesum, Diário. 1941-1943

17.8.25

Transcrição da utopia para a realidade técnica e operacional

O mesmo se aplicará à «libertação»: será que a libertação, sob todas as suas formas, não terá sido ao mesmo tempo a realização e o fim da liberdade? É este o grande problema da modernidade.
O destino negativo do movimento da modernidade inscreve-se no facto de que tudo quanto pertencia ao imaginário, ao sonho, ao ideal, à utopia, foi transcrito para a realidade técnica e operacional. Esta materialização de todos os desejos, esta hiper-realização de todas as possibilidades, é uma desalienação radical. A realização é incondicional, já não há linha de retaguarda do mundo, acabou-se o impossível, já não há transcendência onde nos refugiarmos. Acabou-se o homem alienado: há apenas um indivíduo inteiramente realizado — virtualmente, bem entendido. A dimensão virtual monopoliza hoje todas as retaguardas do mundo e contém o real por inteiro, expulsando qualquer alternativa imaginária. Ora, o real morre verdadeiramente a partir do momento em que o imaginário deixa de o fazer funcionar, soçobrando assim no virtual. O indivíduo torna-se finalmente idêntico a si mesmo — a promessa do Eu foi realizada. Realizou-se a profecia de toda a História moderna, a profecia de Hegel, de Marx, de Stirner, dos situacionistas: o fim do sujeito separado. Mas não se realizou para melhor, apenas para pior: do Outro ao próprio, da alienação à identificação; da mesma forma que a profecia nietzschiana da transvaloração dos valores se realizou para o pior, nessa passagem não para além mas aquém do bem e do mal.

Jean Baudrillard, O paroxista indiferente. Conversas com Philippe Petit

Em Westerbork

O Jopie sentado no urzal sob o grande céu estrelado numa conversa sobre a saudade: «Não tenho saudades, afinal de contas estou em casa.» Aprendi muita coisa nessa ocasião. Está-se «em casa». Sob um céu, uma pessoa está em casa. Em cada lugar deste mundo está-se «em casa», quando uma pessoa traz tudo consigo.
Muitas vezes senti-me, e ainda me sinto, como um navio que recolheu uma carga preciosa a bordo. Os cabos foram cortados e agora o navio navega plenamente livre e por todos os países levando consigo a carga preciosa.
Uma pessoa deve ser a sua própria pátria.

Etty Hillesum, Diário. 1941-1943

16.8.25

Dar mortos pela liberdade

«Morrer a ocidente.» Maria achava que nem isso. Morria-se mas era sem bússola, sem convicção — para aí, sim.
Morte por resignação e por arteirice do a mim não me enganas tu e do salve-se quem puder, pois em matéria de arriscar o Zé Povinho era todo manguitos. Revoluções poucas e só com dois ou três mortos para ilustrar. A Maria sabia, a Maria tinha feito contas. Ou antes, a Alexandra. A Alexandra é que apurara que em oito séculos de História o Zé Povinho do olho vivo tinha dado menos mortos pela liberdade do que uma pequena república da América Latina com cem anos de existência. E tudo porque nós cá por casa somos da arma do manguito, morrer, sim, mas devagar e cada qual na sua enxergazinha ainda que bem podrida.

José Cardoso Pires, Alexandra Alpha

15.8.25

Barcos e poder

A dada altura do Abecedário, Gilles Deleuze conta o episódio mais revolucionário que vivenciou. Não foi durante o maio de 1968, mesmo se ele trabalhou com doentes esquizofrénicos testando a arte como forma de auto-constituição e de expansão vital; não foi com os presidiários a quem ouviu e entrevistou com Michel Foucault. Gostaria de poder ler, um dia destes, a biografia cruzada de François Dosse (a Deleuze e Guattari) para compreender melhor todo aquele frenesim experimental.

O acontecimento mais revolucionário deu-se quando, devido às férias pagas, muitos franceses invadiram as praias até então de usufruto exclusivo dos burgueses (o filósofo não refere a data, é possível que tenha sido em 1936, por decisão de León Blum). Para a família de Deleuze, como para outras, foi o terror ver operários e funcionários subitamente a ocuparem o mesmo espaço. Nunca tinham sentido tanto medo, viam os privilégios serem partilhados, quem sabe em risco. Era outra tomada da Bastilha, do gozo (incluindo o ócio, apesar de tudo).

Na Europa de 2025, sobretudo nos países do sul, não se vive igual terror quando imigrantes entram de barco e a burguesia — pequena, média, mental, o que for — assiste à entrada de barco de imigrantes de terras oprimidas e financeiramente colonizadas? Nós tínhamo-los numa redoma, mas eles, espevitados e arteiros, fazem-se ao caminho, arremetem contra a miséria que lhes impusemos. Atiram-se com tudo o que têm, o corpo e um saco de pertences, contra essa burocracia legal que os espolia com indiferença. É revolucionário e paradoxal ver este medo empreendedor, o lançar-se ao largo seja como for, dar o peito ao trabalho e ao desconhecido. Contávamos nós prosseguir nesta pasmaceira estéril e abonada, e não é que os esquecidos, os soterrados da História se levantam e entram, sem mais aquela, sem pedirem licença, em território europeu, nas terras do soberano que não está para exercer a hospitalidade, esse valor tão grego e tão cristão e que, por isso mesmo, não deveria parecer tão incompatível com os princípios ocidentais? Há uma diferença, porém: um terror que não chega por leis tranquilas, nem pelo consenso social que as motivou. Mas pelo desespero económico e pelo medo de morrer. É um terror, no que toca ao económico, não acomodado pelo direito, que por vontade ocidental se torna por isso a ele exposto (e a toda a violência que não assume letra de lei).

Ainda um aparte. Slavoj Zizek considera que a premonição de Jacques Lacan se confirmou. Para a expor, cito Luís Mourão, que a reeelabora a partir de Didier Eribon: “Em 1969, Foucault convida Lacan para uma série de conferências em Vincennes. Criada no rescaldo do Maio de 68 como experiência piloto de autonomia universitária, a Universidade de Vincennes é um lugar conturbado: confrontos sucessivos com o ministério, com as forças policiais, entre as várias facções extremistas. O psicanalista é mal recebido, a conferência é breve, apenas o suficiente para Lacan deixar uma das suas famosas «cartas roubadas» e abandonar a sala: «Aquilo a que vós aspirais como revolucionários, é a um mestre. Tê-lo-eis»”. Eis o que se verifica, uma realização perversa das velhas lutas pelos novos mestres: quis-se a abolição das restrições sexuais, conseguiu-se uma desvinculação praticamente absoluta, em que nos tornamos mónadas indecifráveis e distantes, tanto paralisados pelo pavor ao assédio, como armados de um formalismo que desvitaliza e desencanta qualquer encontro. Zizek dá ainda o exemplo de Elon Musk e dos seus 14 filhos de diferentes mulheres, um desbragamento não só elitista como falocêntrico. No plano do trabalho, pugnou-se pelo fim da alienação nas fábricas e conseguiu-se converter cada qual em empresário de si mesmo, livre para se poder explorar. Isto é, o trabalho deixa de ser alienante, nós é que nos impusemos a alienação por necessidade de sobrevivência. Por fim, exigiu-se um ensino menos teórico, mais adstrito aos problemas reais e concretos. Criaram-se cursos de 3 anos em que a submissão ao prático — um saber mais profissionalizante e outros slogans do mesmo jaez — é o principal factor de estupidificação geral na academia (como se a entrega ao entretenimento e ao consumo não fosse um dispositivo repressivo, jamais libertador) e de pórtico à tirania. Não estivéssemos na era da objetividade — 5 minutos para os judeus e 5 minutos para os nazis, sentenciou Godard — e talvez Adorno pudesse ainda ter algo a dizer. Cito um passo do fragmento 43 de Minima moralia, entre outros que evidenciam a esterilidade da reprodução mecânica do pensado, dispositivo evidente de poder: “Quem alguma vez, pela força da sua precisa reacção em face da seriedade da disciplina de uma obra artística, se submete à sua lei formal imanente, à coerção da sua configuração, vê desvanecer-se-lhe a prevenção do meramente subjectivo da sua experiência como uma mísera ilusão, e cada passo que dá, graças à sua inervação extremamente subjectiva, para se adentrar na obra, tem uma força objectiva incomparavelmente muito maior do que as grandes e consagradas conceptualizações acerca, por exemplo, do «estilo», cuja pretensão científica se impõe à custa de tal experiência. Isto é duplamente verdadeiro na era do positivismo e da indústria cultural, cuja objectividade é calculada pelos sujeitos que a organizam. Perante esta, a razão refugiou-se toda, e sem janelas, nas idiossincrasias, acusadas de arbitrariedade pela arbitrariedade dos poderosos, porque eles querem a impotência dos sujeitos, em virtude da angústia frente à objectividade que só em tais sujeitos se encontra preservada”. Diagnóstico pontualmente discutível, mas que, no seu todo, instiga uma compreensão das novas perversões, diversamente mascaradas, que aí vêm.

11.8.25

Vicariously I live while the whole world dies

Porque as músicas da nossa adolescência, e não só, nos perseguem, como os fantasmas do nosso desejo, algo que Mark Fisher poderia ter formulado. Elas eram um conhecimento teórico das coisas, prévio a uma vivência e a um entendimento mais empíricos.


Eye on the TV, 'cause tragedy thrills me
Whatever flavor it happens to be like
"Killed by the husband"
"Drowned by the ocean"
"Shot by his own son"
"She used the poison in his tea"
"Then kissed him goodbye"
That's my kind of story
It's no fun 'til someone dies

Don't look at me like I am a monster
Frown out your one face, but with the other
Stare like a junkie into the TV
Stare like a zombie while the mother holds her child
Watches him die
Hands to the sky crying, "Why, oh why?"

'Cause I need to watch things die
From a distance
Vicariously I live while the whole world dies
You all need it too, don't lie
Why can't we just admit it?
Why can't we just admit it?
We won't give pause until the blood is flowin'
Neither the brave nor bold
Nor brightest of stories told
We won't give pause until the blood is flowin'
I need to watch things die
From a good safe distance
Vicariously, I live while the whole world dies
You all feel the same, so
Why can't we just admit it?

Blood like rain come down
Drum on grave and ground
Part vampire, part warrior
Carnivore and voyeur
Stare at the transmittal
Sing to the death rattle

La-la, la-la, la, la, la-lie
La-la, la-la, la, la, la-lie
La-la, la-la, la, la, la-lie
La-la, la-la, la, la, la-lie

Credulous at best, your desire to believe in
Angels in the hearts of men
Pull your head on out your hippy haze and give a listen
Shouldn't have to say it all again
The universe is hostile, so impersonal
Devour to survive, so it is, so it's always been
We all feed on tragedy
It's like blood to a vampire
Vicariously, I live while the whole world dies
Much better you than I

10.8.25

O genocídio ao almoço

Nick Maynard, cirurgião do hospital universitário de Oxford, tem feito missões em Gaza desde 2010 no hospital Nasser, em Khan Younis. Entre cirurgias, contou ao Guardian que desde que os centros da GHF [Fundação Humanitária de Gaza] abriram só vê predominantemente ferimentos de bala, e as vítimas chegam nos dias em que há distribuição, entre 6 a 12 por dia, com os mesmos ferimentos - tiros no pescoço, cabeça ou braços. "Houve uma noite em que admitimos quatro adolescentes baleados nos testículos. Isto sugere uma atividade de tentar acertar em determinadas partes do corpo", conta.


Em toda a notícia, apesar do rigor, nunca se usa o termo 'genocídio'.

9.8.25

«Se Deus não ajudar, hei-de eu ajudar a Deus»

Entre 29 de Julho e 5 de Setembro, Etty provavelmente não manteve um diário. Houve uma precipitação dramática na sua biografia. Nesse período ela pede voluntariamente uma convocatória para Westerbork e parte para o campo. Porém, acontecimentos decisivos na vida dela foram certamente a doença e a morte súbita de S. No começo de Setembro de 1942, Etty obteve licença para regressar durante uns dias a Amesterdão. Chega doente. Neste último caderno conservado de Etty, ela descreve a morte de Spier, as saudades que sente de Westerbork e pedaços de recordações de pessoas e situações que havia deixado.

15 de Setembro de 1942. Terça-feira de manhã, às dez e meia.

Tudo junto afinal é capaz de ter sido um pouco de mais, meu Deus. Agora sou lembrada que uma pessoa também tem um corpo. Pensei que o meu espírito e o meu coração seriam incapazes de aguentar tudo, mas agora o meu corpo apresenta-se e diz: «Basta». E neste momento sinto a grande quantidade de coisas que me deste a suportar. Tanta coisa bonita e tanta coisa difícil. E assim que me mostrei pronta a suportar, o que era difícil transformou-se a cada volta em algo bonito. E o que era belo e grande era por vezes ainda mais difícil de tolerar que o sofrimento, de tão dominante que era. Como um só pequeno coração humano consegue passar por tantas experiências, meu Deus; como consegue sofrer e amar tanto. Estou-te muito agradecida, meu Deus, por teres escolhido especialmente o meu coração, nestes tempos que correm, por lhe ter sido dada a oportunidade de passar por tudo o que passou. Talvez seja bom eu ter adoecido, ainda não me conformei com este facto, ainda estou um bocadinho atordoada, à procura e desamparada, mas ao mesmo tempo tento reunir alguma paciência retirada aos poucos de todos os cantos do meu ser. Deverá ser um tipo completamente novo de paciência para uma situação completamente nova, assim o sinto. E hei-de seguir novamente o velho método conhecido e de vez em quando falar comigo mesma nestas linhas azuis. Conversar contigo, meu Deus. Isto está certo? Postas as pessoas de lado, só sinto necessidade de falar contigo. Gosto imenso das pessoas, porque em cada uma amo um pedaço de ti, meu Deus. Porém agora preciso de muito paciência, muita paciência e reflexão, vai ser muito difícil. E agora sou obrigada a fazer tudo sozinha. A melhor e mais nobre parte do meu amigo, do homem que te despertou em mim, já está contigo. O que restou foi um velho senil e mirrado, nos dois quartinhos onde eu vivi as minhas maiores e mais profundas alegrias. Estive à beira do leito e vi-me perante um dos teus últimos enigmas, meu Deus. Dá-me uma vida inteira para entender tudo.
Enquanto estou a escrever isto, sinto que é bom eu ter de ficar aqui. Vivi tão intensamente nos últimos meses que de repente me parece, vendo as coisas agora: nuns meses gastei as provisões para uma vida inteira. Talvez tenha sido demasiado temerária na minha vivência interior, de maneira que esta alagou todas as margens, ou não? Não fui demasiado temerária, se escuto este aviso teu.

Etty Hillesum, Diário. 1941-1943 (trad. Maria Leonor Raven-Gomes)

22.7.25

Soldados da morte e da vida

Em vida um homem é flexível e fraco.
Quando morre torna-se rígido e forte.
Em vida as ervas e as árvores são flexíveis e frágeis.
Quando morrem ficam secas e murchas.

Por isso
Quem é rígido e forte é um soldado da morte
Quem é flexível e fraco é um soldado da vida.

Assim,
Se um exército é forte, será destruído.
Se uma árvore é forte, quebrará.
O que é forte e grande ficará por baixo.
O que é flexível e fraco ficará por cima.

Lao Tse, Tao Te King. Livro do Caminho e do Bom Caminhar
traição de António Miguel de Campos

6.7.25

«O deserto tornou-se História / Térmitas escrevem-na / Com as suas tenazes / Na areia» (Peter Huchel)



Ânimo
Para Peter Huchel


Não te deixes endurecer
Neste tempo de dureza
Os duros hão-de quebrar
Os espinhos vão-te picar
Mas quebrarão com certeza

Vê se não ficas amargo
Neste tempo de amargor
Os poderosos também tremem
— quando outros nas prisões gemem —
Mas não com a tua dor

Não te deixes assustar
Neste tempo de terror
Só nos querem obrigar
A deixarmos de lutar
Antes da luta maior

Tu, não te deixes usar
Usa o teu tempo à vontade
Não podes desaparecer
Precisas de nós, e nós
Da tua serenidade

Não queremos ficar calados
Neste tempo de mudez
O verde irrompe nos prados
Vamos mostrá-lo a todos
Para que o saibam de vez

Wolf Biermann, Não esperes por melhores dias. Cantigas de escárnio, melancolia e maldizer
traição de João Barrento

O melhor intensificador da visão

Contra tanta imbecilidade e tantas ideias fanáticas, o sentimento confere profundidade e verdade ao argumento. Só um corpo que pensa pode chorar. Estas lágrimas são já um outro grau no discernimento. O caminho não é, pois, alcandorar o argumento ao absoluto nem à prepotência. Com sensibilidade, o lugar-menor da esquerda pode fazer falar todo o sofrimento, esse sofrimento que se multiplica, amordaça e rebaixa a cada intervenção desta direita extrema que predomina no parlamento. Pergunta-se Alexander Kluge: «Qual é o melhor intensificador da visão? O telescópio ou a lágrima?». A intervenção de Isabel Mendes Lopes revela como é possível ser-se mais clarividente, num contexto de letargia e colaboração institucional com a pulhice. Quando tudo foi roubado à esquerda — em especial uma certa rebeldia e descaro —, nada mais sobra do que decência e lágrimas, uma potência débil tão invisível como a que investe as personagens de Kafka.

2.7.25

Uma ocorrência da Natureza

Descida profunda. 15 metros, 20 metros, 30 metros, 35 metros. Era como se as montanhas do Colorado estivessem debaixo de água. Penhascos e ravinas, barrancos e vales. Peixes e plantas que Eloise nunca vira; os peixes que reconhecia eram enormes, atrevidos. Fez pontaria a uma garoupa-do-golfo, falhou, fez novamente pontaria e deu-lhe um tiro certeiro. Era tão grande que Juan a ajudou a carregá-la para a sua corda de pesca; a fricção da corda queimava-lhe os dedos. À sua volta, disparos e transporte de peixes em frenesi. Loras, pargos, charuteiros-catarinos. Sangre. Acertou numa merluza-negra e noutra garoupa-do-golfo, contente por não ter visto César, por estar por sua conta. Depois ficou assustada, mas viu-o muito ao longe e voou rapidamente na sua direcção através dos penhascos serrilhados. Ele deu às barbatanas, esperando por ela no escuro, e depois puxou-a para si. Abraçaram-se, com os reguladores a entrechocarem. Ela apercebeu-se nessa altura de que o pénis dele estava dentro dela; entrelaçou as pernas à volta dele enquanto giravam e ondulavam no mar escuro. Quando saiu de dentro dela, o seu esperma começou a vogar para cima, como se fosse uma pálida tinta de polvo.
Quando, mais tarde, Eloise pensou nisto, não foi como se recordasse uma pessoa ou um acto sexual, mas como se tivesse sido uma ocorrência da Natureza, um pequeno tremor de terra, uma rabanada de vento num dia de Verão.

Lucia Berlin, Manual para mulheres de limpeza

1.7.25

Pulsação e quietude

No quarto, voltou a olhar para o poema. Assim também toda a vida chega / ao lugar da sua quietude. Não. Seja como for, não é vida, a palavra é sangre, sangue, tudo o que pulsa e flui. A luz do candeeiro era demasiado fraca, os insectos iam contra o abat-jour. Quando apagou a sua luz, a música recomeçou no bar. A pancada insistente do baixo. A sua pulsação, pulsava. Sangre.
Tinha saudades da sua cama, firme, do embalar eficiente dos carros na via rápida ao longe. Aquilo de que sinto falta é das minhas palavras-cruzadas pela manhã. Oh, Mel, que fazer? Parar de dar aulas? Viajar? Fazer um doutoramento? Suicidar-me? De onde veio esse pensamento? Mas a minha vida é dar aulas. O que é patético. Menina Gore, chatice mor.

Lucia Berlin, Manual para mulheres de limpeza

«Quanto pó se acumula / no tecido nervoso de uma vida?» (Primo Levi)

A mulher está pendurada na janela do 13.º andar a chorar
a beleza perdida da sua própria vida. Vê o 
Sol a declinar a ocidente, sobre a superfície parda de Chicago.
Julga lembrar-se de ouvir a sua própria vida
a desprender-se, ao cair da janela do 13.º andar
na zona oriental de Chicago, ou ao trepar até
ao alto para se reaver a si mesma.

Joy Harjo, «A mulher pendurada na janela do décimo terceiro andar», Ela tinha alguns cavalos

9.6.25

Um paraíso para todos

Há coelhos que são despedaçados
debaixo de carros que circulam de noite
mas aparecem do outro 
lado sem pisaduras
respirando tranquilamente
como se imunes ao medo.

Joy Harjo, Ela tinha alguns cavalos [trad. Vasco Gato]

19.5.25

Era uma vez duas vezes

Habría una vez dos veces. Una se llamaba Una vez y la otra se llamaba Otra vez. Una y otra vez formaban la familia A veces, que vivía y comía de vez en vez.
Los grandes imperios dominantes eran Siempre y Nunca que, como es evidente, odiaban a muerte a la familia A veces. Ni Siempre ni Nunca toleraban que los A veces existieran. Siempre no podía permitir que Una vez viviera en su reino porque entonces Siempre dejaba de serlo, porque si ya hay una vez entonces ya no hay siempre. Nunca tampoco podía permitir que Otra vez apareciera otra vez en su reino porque Nunca no puede vivir con Una vez, y menos si esa vez es Otra vez. Pero Una vez y Otra vez se la pasaban molestando una y otra vez a Siempre y a Nunca. Y así fue hasta que Siempre las dejó en paz para siempre y Nunca nunca las volvió a molestar.
Y Una vez y Otra vez se la pasaron jugando una y otra vez. [...] Y así se la pasan felices de vez en vez, ya ves. Y siempre fueron Una y Otra vez y nunca dejaron de ser A veces. [...]
Moraleja 3: Los Siempre y los Nuncas los imponen los de arriba, pero abajo aparecen «los molestos» una y otra vez que, a veces, es otra forma de decir 'los diferentes' o de vez en vez, 'los rebeldes'.

Subcomandante Marcos

25.4.25

Cão raivoso



Mais vale ser um cão raivoso
Que uma sardinha
(Que uma sardinha)
Metida, entalada na lata
Educadinha
(Educadinha)
Pronta a ser comida, engolida, digerida
E cagadinha
Mais vale ser diferente da sardinha
Um cão raivoso que sabe onde ferra
Ferra fascistas e chama-lhe um figo
Olhos atentos e patas na terra

4.3.25

Democracia, demónios e poesia

Aconteceu que um rico curtidor, que se chamava Anytos, tinha um filho que seguia com especial fervor os ensinamentos que Sócrates concedia nas ruas. Anytos era um autêntico democrata. Tinha sido proscrito em Filé. Tinha participado na queda dos Trinta. Anytos foi buscar o poeta trágico Meletos. Juntaram-se ambos com o orador Lykon. Meletos, o Poeta, foi quem realizou a denúncia no tribunal do arconte-rei, acusando Sócrates de não só faltar à piedade pelos deuses que a cidade venerava no alto da colina, mas também por ter introduzido outros novos sob a forma de vozes secretas, intermitentes, invisíveis, que resultavam na presença na alma de um demónio de natureza desconhecida.
(...)
O tribunal escolheu à sorte 502 cidadãos com mais de trinta anos de idade. O poeta trágico falou primeiro, o curtidor em segundo lugar, o orador por último. Sócrates nada disse. Foi condenado à morte por uma clara maioria, de maneira democrática, por 281 votos.

Pascal Quignard

9.2.25

Ler, comer, caminhar, dançar, ouvir (ou um texto para Vera Mantero e Susana Santos Silva)

Os escritores não conhecem a página em branco, o bailarino não conhece a inércia, nem sequer quando está parado (em muitos casos, sobretudo quando está parado). Parado, um bailarino é um monte Fuji na sua expansão silenciosa, Andes que não cessam de correr e guiar. Mas o dia era mais longo, tão longo como um corpo pode ser. Era feito das pedras que iam falando por baixo dos pés: ir até onde se começa a sentir que há mais dentro do que exterior, em que o ruído de fora se estende pelos gestos para sempre incalculados. Que dissolução essa inesgotabilidade interior. Em que a expansão do mundo é tão óbvia como dois braços a pedir socorro. Todo o corpo era a extensão de tanto por viver! O que levamos para dentro de uma vida, enfim algum momento parecendo tralha sem fim – e distraídos de tudo o que algum deus decidiu escolher por nós. Ah não, que somos controlados para determinar que sim, não infundado talvez, funcionários de uma intrínseca capacidade de juízo, tão culpada!, o ler as costas do pássaro no céu. Alguém com os seus trejeitos de arroubos desconjuntados era afinal de um tempo mais linear do que matemático: uma hora certa para uma resposta não menos convencida, a beleza e a sua promessa, tão doce e criminal. Era isso e um homem a perceber que nenhum se aguenta perante a injúria persistente, as notícias em quotidiano negro. O rio mantém-se secreto dentro das caixas da cidade, as formações lineares em que o corpo não devém, é carne repousando sobre as águas, e as ruas vão encontrando sempre maneira de encontrar um quintal e uma solidão verdadeiramente exacta. Ninguém entende um grito, nem sequer das vezes em que acontece ser ouvido. Às vezes era um desvio da escola, vínhamos aí por um caminho apertado com o rio ao lado, se rio houvesse. O rio seguia o desvio com nervo, em silêncio. Num túnel em que a história fosse intocada estariam todos aqueles para quem o desamparo se injectava, era pela adrenalina que seguíamos. Acabar consigo se nenhum amparo chega, despertar mais surdamente dos dias etéreos. Hoje por hoje, o túnel é só escuro, nenhum sofrimento que se veja; existem muros dentro d’onde antes se cosiam e colavam sapatos, os gandulos já não têm vidros para partir. Protegemo-nos do anterior em lugares já racionalmente vistos, a continuação do fim no meio. O corpo consegue regressar num teorema: em frente coincidindo com o por dentro, um poço de linhas tracejadas. Bem sei que nada mais falo do que para me resguardar o mais que possa. Mal nos defendemos das palavras com que recobrimos qualquer passado, o passado de qualquer um. Caminhamos sem fim porque o nosso cérebro esteve em apneia, ninguém diga que caminhar é só um sistema antigo que faz as pernas andar, porque essa antiguidade é mais sistemática que os próprios músculos que fazem sistema e modo impessoal de uso. As palavras são o outro engolido de modo imperceptível, é-nos ofertado como a fome. A pobreza de viver é social, a segmentação: primeiro ter fome, depois comer, sentir satisfação, defecar e assim, apesar de em nenhuma memória possível termos sido tudo isso ao mesmo tempo. Atidos pois ao difícil, ao pensar sem roda porque nenhum abandono é mais possível. A língua são esculturas feitas do ar com que não se sabe lidar. Nenhuma língua pertence mais que a si própria, ela fala pelas bocas e os dentes pessoais. Ausência traduz-se em mamã, papá. O ar resume o total desacerto, ter nascido e após falhar a intimidade. Adormecidos desse delírio com que a vida vinha a si antes do tempo carniceiro, como um marchante comum. Éramos corpo antes, imponderabilidade inimaginável. Desfigurado grito é todo o grito, o ar como esse invasor, posto fronteiriço de outro mundo: a respiração começa por dizer um adeus. Não tenho senão por obscuras as palavras para tanta claridade, a claridade com que avanço. Comer é estar com um sacerdote qualquer, o que organizou o sacrifício por trás da cortina. E vem depois todo o tempo atrás, as festas em que a humanidade era menos confusa – sempre menos confusa é a alegria que a regularidade com que se morre. No fim do dia, os corpos encolhidos ouvem como um ser ainda mal recém-nascido. O corpo é conhecer que o odre esteve fechado. A retrospecção é o ineducável; a vigilância, só o medo de morrer. 

A self called nowhere


I'm sitting on the curb
Of the empty parking lot
Of the store where they let me play the organ
I'm waiting for my ride
But I want to wait inside
Of the store where they let me play the organ

But I'm thinking of a wooden chair
In a room at the top of a stair
And I'm looking down the stairwell
At the vanishing dot
On the map of the spot
Let me take you there
The dotted line
Surrounding the mind
Of a self called nowhere
It's a thing named "it"
In a bottomless pit
You can't see it there
The sunken head
That lies in the bed

Of a self called nowhere

Standing in my yard
Where they tore down the garage
To make room for the torn down garage
I'm looking for my car
But I must have sold my car
When I needed to buy an electric organ
But I'm thinking of a wooden chair
In a room at the top of a stair
And I'm looking down the stairwell
At the vanishing dot
On the map of the spot
Let me take you there
The dotted line
Surrounding the mind
Of a self called nowhere
It's a thing named "it"
In a bottomless pit
You can't see it there
The sunken head
That lies in the bed
Of a self called nowhere
Nowhere
The vanishing dot
On the map of the spot
Let me take you there
The dotted line
Surrounding the mind
Of a self called nowhere
It's a thing named "it"
In a bottomless pit
You can't see it there
The sunken head
That lies in the bed
Of a self called