Os escritores não conhecem a página em branco, o bailarino não conhece a inércia, nem sequer quando está parado (em muitos casos, sobretudo quando está parado). Parado, um bailarino é um monte Fuji na sua expansão silenciosa, Andes que não cessam de correr e guiar. Mas o dia era mais longo, tão longo como um corpo pode ser. Era feito das pedras que iam falando por baixo dos pés: ir até onde se começa a sentir que há mais dentro do que exterior, em que o ruído de fora se estende pelos gestos para sempre incalculados. Que dissolução essa inesgotabilidade interior. Em que a expansão do mundo é tão óbvia como dois braços a pedir socorro. Todo o corpo era a extensão de tanto por viver! O que levamos para dentro de uma vida, enfim algum momento parecendo tralha sem fim – e distraídos de tudo o que algum deus decidiu escolher por nós. Ah não, que somos controlados para determinar que sim, não infundado talvez, funcionários de uma intrínseca capacidade de juízo, tão culpada!, o ler as costas do pássaro no céu. Alguém com os seus trejeitos de arroubos desconjuntados era afinal de um tempo mais linear do que matemático: uma hora certa para uma resposta não menos convencida, a beleza e a sua promessa, tão doce e criminal. Era isso e um homem a perceber que nenhum se aguenta perante a injúria persistente, as notícias em quotidiano negro. O rio mantém-se secreto dentro das caixas da cidade, as formações lineares em que o corpo não devém, é carne repousando sobre as águas, e as ruas vão encontrando sempre maneira de encontrar um quintal e uma solidão verdadeiramente exacta. Ninguém entende um grito, nem sequer das vezes em que acontece ser ouvido. Às vezes era um desvio da escola, vínhamos aí por um caminho apertado com o rio ao lado, se rio houvesse. O rio seguia o desvio com nervo, em silêncio. Num túnel em que a história fosse intocada estariam todos aqueles para quem o desamparo se injectava, era pela adrenalina que por aí seguíamos. Acabar consigo se nenhum amparo chega, despertar mais surdamente dos dias etéreos. Hoje por hoje, o túnel é só escuro, nenhum sofrimento que se veja; existem muros dentro d’onde antes se cosiam e colavam sapatos, os gandulos já não têm vidros para partir. Protegemo-nos do anterior em lugares já racionalmente vistos, a continuação do fim no meio. O corpo consegue regressar num teorema: em frente coincidindo com o por dentro, um poço de linhas tracejadas. Bem sei que nada mais falo do que para me resguardar o mais que possa. Mal nos defendemos das palavras com que recobrimos qualquer passado, o passado de qualquer um. Caminhamos sem fim porque o nosso cérebro esteve em apneia, ninguém diga que caminhar é só um sistema antigo que faz as pernas andar, porque essa antiguidade é mais sistemática que os próprios músculos que fazem sistema e modo impessoal de uso. As palavras são o outro engolido de modo imperceptível, é-nos ofertado como a fome. A pobreza de viver é social, a segmentação: primeiro ter fome, depois comer, sentir satisfação, defecar e assim, apesar de em nenhuma memória possível termos sido tudo isso ao mesmo tempo. Atidos pois ao difícil, ao pensar sem roda porque nenhum abandono é mais possível. A língua são esculturas feitas do ar com que não se sabe lidar. Nenhuma língua pertence mais que a si própria, ela fala pelas bocas e os dentes pessoais. Ausência traduz-se em mamã, papá. O ar resume o total desacerto, ter nascido e após falhar a intimidade. Adormecidos desse delírio com que a vida vinha a si antes do tempo carniceiro, como um marchante comum. Éramos corpo antes, imponderabilidade inimaginável. Desfigurado grito é todo o grito, o ar como esse invasor, posto fronteiriço de outro mundo: a respiração começa por dizer um adeus. Não tenho senão por obscuras as palavras para tanta claridade, a claridade com que avanço. Comer é estar com um sacerdote qualquer, o que organizou o sacrifício por trás da cortina. E vem depois todo o tempo atrás, as festas em que a humanidade era menos confusa – sempre menos confusa é a alegria que a regularidade com que se morre. No fim do dia, os corpos encolhidos ouvem como um ser ainda mal recém-nascido. O corpo é conhecer que o odre esteve fechado. A retrospecção é o ineducável; a vigilância, só o medo de morrer.
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