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15.6.24

«Enche o nosso coração de alegria»

A literatura, mais particularmente, a poesia: «a conjuração mágica da natural afasia» (Barthes).

Uma criança com um medo terrível, um medo de faltar às aulas, de falhar, só se encontra com ela própria a cantar um poema. Que trabalho inacreditável de Kiarostami! O estar ali, o abandonar-se a si mesmo, como a única tarefa.


Abbas Kiarostami, Trabalhos de casa (1989)

11.2.23

Viver

Felicidade, acabar com o pouco: «uma totalidade sem restante, uma soma sem excepção, um lugar sem nada ao lado» (Fragmentos de um discurso amoroso)

Ainda Barthes, amor e niilismo: «Existe para mim um «valor superior»: o meu amor. Nunca digo a mim mesmo: «Para quê?» Não sou niilista. Nunca se me põe a questão dos fins.»

8.2.23

Gastar-se

Regresso: «Não consigo conhecer-te», quer dizer: «Nunca saberei o que verdadeiramente pensas de mim.» Não posso decifrar-te, pois não sei como tu me decifras.

Gastar-se, agitar-se por um objecto impenetrável é pura religião. Fazer do outro um enigma insolúvel de que depende a minha vida é consagrá-lo como deus; nunca chegarei a desfazer a questão que me levanta, o apaixonado não é Édipo. Mais não me resta do que transformar a minha ignorância em verdade. Não é verdade que quanto mais se ama, mais se compreende; o que a acção de amor obtém de mim é apenas esta evidência: que o outro não é para conhecer; a sua opacidade não é apenas a tela de um segredo mas sim uma espécie de evidência em que está abolido o jogo da aparência e do ser. Vem-me então esta exaltação de amar a fundo alguém desconhecido e que assim permaneça para sempre: movimento místico: alcanço o conhecimento do inconhecível.

Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso

Nota de Gide: «E quanto amor é sempre preciso para perceber o que difere de nós»

31.1.23

Mancha sem loucura

«O verdadeiro acto de luto não é sofrer com a perda do objecto amado; é constatar um dia, na pele da relação, uma leve mancha, ali colocada como sintoma da morte certa: pela primeira vez, faço mal a quem amo, certamente sem o querer, mas sem me enlouquecer» (Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso).

Raras vezes é conseguido tanto despojamento; a precisão da culpa, tão clara, sem gritos nem ecos. Aquele que magoa o amado devia ficar louco de imediato. Mas isso não sucede, e ainda sobejam razões para que o mundo tenha enlouquecido.

O politicamente correcto é norma moral, mas também cobertura doce que impede a digestão de se estar vivo — como se viver fosse abstracto, sem entrega. Mas queremos cada vez mais entusiasmo, muito mais do que apenas sobreviver ou viver bem.

O doce é antecâmara da renúncia. E o mal, porque exterior e mau, merece condenação, ira e sadismo, a distribuição justa do sofrimento.

30.1.23

Discursos de vitória: mudar-se para outro lado

Ele não gosta dos discursos de vitória. Suportando mal a humilhação de quem quer que seja, logo que uma vitória se desenha algures, fica com vontade de se mudar para outro lado (se fosse deus, havia de inverter sem cessar as vitórias — o que de resto Deus faz!). Transposta para o plano do discurso, a vitória mais justa torna-se um mau valor de linguagem, uma arrogância: o termo, reencontrado em Bataille, que fala algures das arrogâncias da ciência, estendeu-se a todos os discursos triunfantes.

Roland Barthes por Roland Barthes

10.4.20

Frantz de François Ozon

Um Ozon algo diferente, neste remake de Broken Lullaby de Ernst Lubitsch (1932). Sem o corpo jovem no verão. Houve, porém, um vislumbre desse corpo quando o soldado francês tomou banho. Em Ozon, retenho o corpo e o desejo que provoca, violento, em que reverbera um toque de nostalgia. Um pouco antes do ponto em que a beleza extrema se poderia tornar extrema crueldade (Gonçalo M. Tavares).

Em Frantz narra-se uma tentativa de suicídio com alguma delicadeza. Sem música dramática — embora com o anúncio de breves sons graves, picadas de estilete — a mulher avança de costas para a câmara, sem grandes planos. Outro detalhe: a habitação de Frantz em Paris. Como teria sido a sua vida aí, que outra pessoa seria. Não sabemos, mas imaginamos, isso é o cinema, é a arte. Que teria/terá pensado Hanna disso? Desse hotel? Também não sabemos, imaginamos. Não explicar, eis o decisivo.

Outro corpo (esse sim também comparece noutros Ozon): corpo melancólico, consumido pela culpa. Vou a França, não vou; conto, ou a felicidade é o mais importante. A coragem de avançar; a fraqueza de contar. Caso porque a mãe diz, é o desejo da mãe. Noutros filmes, pode ser o corpo em face do corpo jovem do verão, abrumado com tanta força. Aqui coube-lhe viver uma vida que não quis, outra tragédia. Não menos realista, de resto.

Uma grande delicadeza: visitar uma campa sem defunto. Fazer visitas à memória, a um amor que nunca se esqueceu, a uma felicidade tão irreal, que permitiu suspender o peso mais pesado entre todos. Tanto mais fantasmática quanto dela não temos imagens.

Goethe, em Fausto, sobre a felicidade: “Treme-me a voz, mal posso respirar; / Isto é um sonho, sem tempo nem lugar”. 

Uma certa ordem no luto, a melancolia necessária para que, talvez, não doa demasiado. De alguma forma, ainda amor (hipótese): “Chocado pela natureza abstracta da ausência; e no entanto, arde, dilacera. Daí que compreenda melhor a abstracção: é ausência e dor, dor da ausência — talvez, portanto, amor?” (Roland Barthes, Diário de luto). Não só o amor como abstracção, como a descoberta e, depois, o convívio com a dor que avulta na ausência; mas também a abstracção como amor, sensação de ausência irremível. “E agora apago-me de novo e volto para essas duas pessoas que por força das circunstâncias eram seres meio abstractos” (Clarice Lispector, A hora da estrela).

Outra bela delicadeza de Hanna: está tudo bem, não se preocupem. Aqui por Paris a vida é uma festa. A força necessária para se ser fraco. Uma vida é uma vida, nem mais nem menos. A coragem de não contar; a coragem de mentir; a coragem de não sofrer com o que o mundo reclama (R. Barthes); de não converter melancolia em auto-comprazimento doce. Habitar a infelicidade, habitar o desejo, um dissídio no livro de Barthes. A propósito, cita Barthes a dada altura uma carta de Proust: “Diga também isto de si para si porque é uma doçura saber que nunca amaremos menos, que nunca nos consolaremos, que nos lembraremos cada vez mais.

Diário de luto, Roland Barthes:

Dor e imortalidade; os mortais continuam a sofrer

“— 'Nunca mais, nunca mais!'
— E no entanto, contradição: este 'nunca mais' não é eterno porque nós próprios morreremos um dia.
'Nunca mais' é um dizer de imortal.

Coragem

“A minha moral
— A coragem da discrição
— É corajoso não se ser corajoso.” (R.B.)

Argumento contra o suicídio

“Como saberei que já não sofro, se morri?” A dor é, sobretudo, o conhecimento da dor.


Agradecendo à Medeia Filmes tanta gentileza por ter tornado acessíveis vários filmes interessantes



31.12.19

Luto, imortalidade, consolo

27 de Outubro de 1977

— «Nunca mais, nunca mais!»
— E no entanto, contradição: este «nunca mais» não é eterno porque nós próprios morreremos um dia.
«Nunca mais» é um dizer de imortal.


29 de Outubro de 1977

Na frase «Ela já não sofre», para quê, para quem remete o «ela»? Que quer dizer este presente?

Roland Barthes, Diário de luto


Não estarás vivo para o dia seguinte. O dia seguinte, mais do que uma abstracção, é uma arrogância. Não podes formular uma eternidade que não te pertence. És mortal, poderás cair outra vez.

Enquanto vives, podes sofrer mas também ser. Apesar do sofrimento, ainda existe a possibilidade de amar, trabalhar, etc. Para muitos, a libertação não é o fazer permitido pela ausência de sofrimento, mas sim e apenas o não sofrer. O não sofrer como desígnio civilizacional, a vida como possibilidade de nunca mais sofrer. Para a civilização ocidental por vezes parece que a vida é a morte, o 'para quê' ou o 'para quem' para que remete o 'ela'. Talvez o não fazer seja outra forma de sofrimento.

"Eu estava organizada para me consolar da angústia e da dor. Mas como é que me arrumo com essa simples e tranquila alegria. É que não estou habituada a não precisar de meu próprio consolo."

Clarice Lispector, "Tanta mansidão"



31 de Maio de 1978

"Não é de solidão que preciso, é de anonimato (de trabalho)".

Roland Barthes, Diário de luto

15.4.19

Barthes íntimo

28 de agosto de 1979

Siempre esa dificultad de trabajar a la tarde. Salí a eso de las seis y media, a la aventura; divisé en la calle de Rennes a un gigoló nuevo, pelo sobre la cara, aro delgado en la oreja; como la calle B. Palissy estaba totalmente desierta, conversamos; él se llamaba François; pero el hotel estaba lleno; le di dinero, me juró estar en la cita una hora más tarde, y por supuesto no estaba. Me pregunté si realmente me había equivocado (todo el mundo exclamaría: dar plata de antemano a un gigoló!), y me dije que, puesto que en el fondo no le tenía tantas ganas (ni siquiera tenía ganas de acostarme), el resultado era el mismo: acostado o no, a las ocho me habría encontrado en el mismo punto de mi vida; y, como el simple contacto de los ojos, de la palabra, me erotiza, es ese goce el que pagué. Más tarde, en el Flore, no lejos de nuestra mesa, otro, angelical con su pelo largo cortado por una raya al medio; de tanto en tanto me mira; me atrae su camisa muy blanca abierta sobre su pecho; lee Le Monde y toma Ricard, creo; no se va, termina por sonreírme; tiene grandes manos, que desmienten la suavidad y la delicadeza del resto; intuyo el gigoló por sus manos (al final se va antes que nosotros; yo lo detengo, porque sonríe, y tomo una vaga cita). Más lejos, toda una familia, agitada: niños, tres o cuatro, histéricos (siempre, en Francia): me cansan a la distancia. Al volver, en la radio, me entero del atentado del IRA contra Lord Mountbatten. Todo el mundo está indignado, pero nadie habla de la muerte de su nieto, un chico de quince años.

Roland Barthes, Incidentes, "Veladas en París" 


21.10.18

De madrugada

Fantasma da madrugada: durante toda a minha vida sonhei levantar-me cedo (desejo de classe: levantarmo-nos cedo para «pensar», para escrever, não para apanhar o comboio dos subúrbios); mas essa madrugada do fantasma nunca eu a veria, mesmo que conseguisse levantar-me cedo; pois para ela ser conforme com o meu desejo seria necessário que, mal me levantasse, eu pudesse, sem perda de tempo, vê-la no despertar, na consciência, na acumulação de sensibilidade que se tem à noite. Como conseguir estar bem disposto à minha vontade? O limite do meu fantasma é sempre a minha in-disposição.

Roland Barthes, Roland Barthes por Roland Barthes

21.8.18

Isto, mil vezes isto

Ele suporta mal qualquer imagem de si próprio, sofre ao ser citado. Considera que a perfeição duma relação humana depende dessa ausência da imagem: abolir entre si, de um para o outro, os adjectivos; uma relação que é adjectivada está do lado da imagem, do lado da dominação, da morte.

Roland Barthes, Roland Barthes por Roland Barthes

18.2.18

Sou louco porque consisto


Há uma estrada que termina sempre no medo masculino — a mulher goza, o homem não sabe como esse gozo funciona (leitura psicanalítica que, cinematograficamente falando, convocaria o film noir e a femme fatale). Mas há múltiplas estradas muito importantes.

A bizarria muitas vezes é só humildade: o retirar-se quando o terror aparece. Só isso, melhor não explicar.

Entender a cabeça que chega a um crime, a cabeça que tem medo, que o realiza tantas vezes lá dentro. As suposições, os tremores em que a energia se escoa. Como se chega a um crime pelo pavor de consistir:

«Desde há cem anos que a loucura (literária) tem fama de consistir nisto: ‘Eu é um outro’: a loucura é uma experiência de despersonalização. Para mim, sujeito apaixonado, é exactamente o contrário: é o tornar-me um sujeito, sem poder deixar de o ser, que me torna louco. Eu não sou um outro: é o que noto com pavor. 
(...)
Sou indefectivelmente eu próprio e é nisso que sou louco: sou louco porque consisto.»
(Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, p.187)

Quer dizer, ama-se e descobre-se que se é. Consisto, sou um, ser-menos, mortal, o terrível. Mas antes disso, experimenta-se com angústia a hipótese, quase niilista, de ser por osmose:

«Eu não possuo o meu corpo como posso eu possuir com ele? Eu não possuo a minha alma — como posso possuir com ela? Não compreendo o meu espírito como através dele compreender?
As nossas sensações passam — como possuí-las pois — ou o que elas mostram muito menos. Possui alguém um rio que corre, pertence a alguém o vento que passa?
Não possuímos nem um corpo nem uma verdade — nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões e a minha vida é vã por fora e por dentro.
Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa dizer — eu sou eu?
Mas sei que o que eu sinto, sinto-o eu.
Quando outro possui esse corpo, possui nele o mesmo que eu? Não. Possui outra sensação.
Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que somos, como sabemos nós o que possuímos?»
(Bernardo Soares, Livro do desassossego, 1982, p. 171).

Nem o corpo nem a alma possuímos — é fantasmático esse terror juvenil de possuir. Aquele medo que precipita o estúpido, a vertigem da antecipação da perda. A descoberta da consistência é a da subjetividade, a da liberdade que questiona o aconchego. Consistência inconsistente, somos mas não sabemos: a cognoscibilidade e a possessão dependeriam da anulação do devir. Não seria possível ser, sem ter que ser um, mesmo quando esse um não é sempre o mesmo? Resta sentir, quando não se possui nem compreende, sem saber quem se é. E é isto o que sobra dos filmes de Lynch: o sentir de quem volta a atravessar o que doeu e não se compreende. E como parecemos próximos de tudo o que ficou por explicar no vivido, até que esse conhecimento escapa entre os dedos como água. Como quando num sonho se tenta muito fazer alguma coisa grandiosa, sexual ou outra, e, quando se está prestes a fazê-lo, no instante imediatamente prévio à ação, acorda-se.


8.2.17

Pensar selvagem

O que choca nos seus livros, é menos a ausência de rigor do que o carácter selvagem das importações intelectuais.

Você diz «selvagem». É correcto. Observo uma espécie de lei pirata que reconhece mal a propriedade das origens. Não, de modo algum, por espírito de contestação. Mas por imediatez do desejo, por avidez, de certa maneira. É por avidez que me apodero por vezes dos temas e das palavras dos outros. De resto, eu próprio nunca protesto quando me «tomam» qualquer coisa.

Roland Barthes, O grão da voz


29.7.15

Ele, pronome execrável

Foi o linguista John Lyons quem escreveu que 'ele' é uma não-pessoa. 'Eu' e 'tu' intervêm numa conversação, são sujeitos, comunicam; 'ele', por seu turno, é assunto de conversa, é objecto, uma não-pessoa gramatical. É com esta base que Roland Barthes elabora uma reflexão notável (de que recolho este trecho):

Isto quer dizer que o «ele» é mau, é a pior palavra da língua: pronome da não-pessoa, anula e mortifica o seu referente; não conseguimos aplicá-lo a quem amamos sem sentir um certo mal-estar. Ao dizer, acerca de alguém, «ele», tenho sempre em vista uma espécie de assassínio pela linguagem, cuja cena completa, por vezes sumptuosa, cerimonial, é o mexerico.

O mexerico é um assassínio que não prescinde do 'ele' como uma de suas armas. Afastar-se de quem use muitas vezes por dia o pronome 'ele', eis um conselho útil. 

E no entanto, e no entanto, no livro em que o escreve, Roland Barthes por Roland Barthes, o autor fala de si usando o tal pronome, 'ele'. Expressão de desamor, de mal-estar consigo, como se o auto-retrato só o fosse levando a cabo aquele sumptuoso assassínio.





22.11.13

Estereoscopia, saltos # 1

1. Pornografia e erotismo

Em O Prazer do texto, Roland Barthes distinguia dois textos: o pornográfico e o erótico. O primeiro revelava tudo e fazia-o duma forma ostensiva, enquanto o segundo apenas deixa entrever o seu sentido, vela e desvela, re-vela o sentido. Isto é, o primeiro é desassombradamente realista, padece de um excesso de precisão, já o segundo é mais sugestivo, desta forma manipulando perversamente o desejo do leitor. Analogamente ao estádio anal, o texto erótico guarda o sentido, repele-o quando e se o entender, tal como a criança faz com as fezes, por si identicadas com ouro (Guy Rosolato). Quando lemos um romance, o que nos motiva é a promessa de uma revelação progressiva: importa conhecer o fim da história, fazer um sentido. Roland Barthes toma uma posição: o texto deve ser erótico, deve montar uma encenação de aparecimento/desaparecimento do objecto de desejo. Qualquer perversão usa ser desejo de dominação pelo outro. Na narrativa tradicional, dominamos, contudo, sempre o desenrolar da plot. O que suscita prazer na leitura é essa relutância ao apaziguamento, diz Roland Barthes, que avança com um exemplo dum texto pornográfico: Bouvard et Pécuchet de Gustave Flaubert. Eis um frase ilustrativa: «Toalhas, lençóis, guardanapos pendiam verticalmente, presos por molas de madeira a cordas estendidas.»

A pornografia, nesta acepção, não é perversa: é honesta. Não promete nada que não possa cumprir, cumpre expectativas. Não joga com o nosso desejo, não nos deixa em suspenso. O risco é que o pode deixar empedernido. O texto pornográfico deixa-nos no ponto em que já nada podemos esperar. É sintoma duma suspeita insanável em relação ao outro e de um assentimento a uma solitude auto-subsistente, espécie de recriação imaginária do seio materno irremediavelmente perdido.

Nos filmes de Béla Tarr, encontramos uma forma de pornografia, uma vez que todos os momentos da narrativa nos são dados. Por exemplo, acompanhamos todo o movimento de uma personagem que sobe as escadas, não se dando o caso de acedermos a dois planos, com corte pelo meio: um com a personagem imediatamente antes de as subir, e outro já depois de executado o movimento. O corte, a elipse que a montagem determinou, é preenchida por nós. No cinema mainstream, o espectador preenche apenas estes hiatos minúsculos. O cinema de David Lynch já nos deixa autênticos buracos por preencher. Já em Béla Tarr, a dificuldade está no seguinte: não temos que preencher nada, não é cinema de montagem, parece que o espectador é repelido. Claro que podemos ver aqui uma forma de menorização, por completa indigência cognitiva. Mas não creio Tarr capaz de tanto. Aquele apaziguamento não é nada que se deseje – materializa, aliás, a derrota do desejo. Deseja-se, quando muito, uma suspensão efectiva do desejo. O cinema passa a ser, em Béla Tarr, a fórmula perfeita do ascetismo – com base, ainda por cima, sensível, imanente, para que contribui sobremaneira a atenção concedida ao lateral. Diz o cineasta: «um filme não pode em caso nenhum ser identificado com uma simples história humana ou, mais exactamente, [é preciso colocar] esta história humana num sistema de relações (...) onde uma parede possa ter a mesma significação dramática que uma acção que se desenrola entre duas pessoas.» Travellings não raro orbitando em torno do impreciso ou vulgar, planos fixos e demorados, nenhuma emissão do espectador. Béla Tarr desmonta, no cinema, a arte de sublinhar (como o faz, mutatis mutandis, Herberto na literatura). Nada será escamoteado, não há espaço para imaginar, aquilo que o filme dá chega. Embora se fale de Herberto como um autor altamente imaginativo, creio que o efeito da leitura é antes a cegueira, pois o leitor nada vê quando o lê – e não por falta de vontade ou competência. Fica o leitor completamente estarrecido, horrorizado, é-lhe por conseguinte exigido um esforço hercúleo para não ficar petrificado. Converte-se em receptor, a pior ofensa que se pode fazer a um leitor.

Os planos de Tarr são pornografia naquela acepção, uma forma de totalitarismo, ou, se quisermos, uma totalidade que consola, aquilo é-nos suficiente, aquilo completa: «Não esperando nada a não ser um fim que chegará quando puder, tendo sido aliviado de todas as preocupações de causalidade, o espectador satisfaz-se com a força do presente, ou antes com a da presença, e mergulha no prazer da imanência.» (Stéphane Bouquet) A compensação possível pela paragem da história e pelo anoitecer das grandes narrativas (Lyotard).



Ulysses confronta-nos com a mesmidade do conhecido, um realismo extremado dirigido ao crítico que se ocupará da obra durante quatrocentos anos. Joyce, o sintoma, diz Lacan: excessivos detalhes, o banal elevado a epopeia, para dizê-lo rápido, tudo à atenção do crítico. Isto é, este texto modernista incorpora já uma possível leitura atribuível ao crítico (como o paciente endereça uma selecção de sintomas ao analista: aqueles que este é suposto interpretar). A obra é já uma primeira teoria da obra, diz-nos Slavoj Zizek. Não esperamos nada, senão o dia-a-dia na sua redundância, interrompido por algumas reflexões feitas em estilos distintos. É abolida tanto a surpresa como o suspense.

Short Movies de Gonçalo M. Tavares é, noutra escala, algo do mesmo tipo: vemos todos os frames, tal como a criança que lê letra a letra.



2. Dança, imagem e poesia

Nada esperam as personagens de Béla Tarr. Habitantes de um lodaçal pardacento que sobre eles exerce uma pressão que lhes determina gestos, conversas, expectativas. Os filmes de Béla Tarr, sobretudo os últimos, incorporam, como o disse Jacques Rancière, aquilo que Deleuze designava por imagens-tempo, «imagens em que a duração se torna manifesta e que é o próprio estofo com que essas individualidades, chamadas situações ou personagens, são tecidas.» São criaturas dessas imagens-tempo, feitas desta matéria voluptuosa. Permeáveis, portanto, ao interior pardacento da Hungria. Tango de Satanás é um exemplo dessa ausência de horizonte, como cedo o entendera Estike. No final do filme, não se realiza o sonho da comunidade. As linhas rectas desenhados pelos vencedores, como Irimias, contrastam com os movimentos circulares, repetitivos, dos homens e mulheres embriagados durante um baile na vila. Diz Gonçalo M. Tavares, em animalescos: «os homens da pré-história não faziam bailes, pelo contrário, estavam sempre apressados, não andavam à roda como os malucos que dançam, que dançar é também isso: não ter pressa, não ter medo, os animais não dançam e os homens primitivos não dançavam». Dançar implica parar, não ter pressa, é um gesto de resistência à «utopia cinética» (Sloterdijk) que a modernidade vem configurando. Dançar, exercer movimentos inúteis, é uma ofensa à comunidade. Dançar pressupõe, também, não se sentir ameaçado, não estar em alerta permanente. Um tempo em que os homens não dancem é um tempo embrutecedor que coloca os homens sob permanente ameaça. Em suspenso. Os mais aptos serão os que funcionam, aqueles de quem esperamos comportamentos previsíveis: «Obrigaram o corpo a comer, obrigaram-no a beber para evitar pô-lo a dançar» (Artaud). As personagens de Béla Tarr, todavia, dançam: não têm saída, adivinha-se um dilúvio – estão, pelo menos, ocupadas. Poderíamos dizer, outrossim: escreve-se poesia porque não se pode fazer outra coisa. Uma das causas daquele maelstrom reside na proliferação de imagens, de simulacros de simulacros, da perda referencial (Baudrillard). Mas não só: também da ausência de uma referência icónica que unisse a comunidade, como sucedia na Idade Média (Bragança de Miranda). Seria interessante estudar Tarkosvki a esta luz (atendendo até ao seu fascínio pela arte bizantina). A dispersão das imagens aboliu a possibilidade da imagem comum: só há imagens individuais. À poesia talvez incumbisse criar uma imagem comum, à semelhança do que sucedia com o mito.



[Também publicado no melhor amigo]


2.8.13

Até onde não sei

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Estranho (lugar)

Mais do que sobre a cultura e a geografia dos espaços em que o poeta esteve, View-Master de Alexandre Sarrazola é sobre as breves eternidades que nos são concedidas viver nesses espaços. Na poesia de um João Miguel Fernandes Jorge, por exemplo, a presença do poeta em certos espaços pode motivar uma incursão pela história e/ou cultura que os configuram. Alexandre Sarrazola não se perde nesses meandros. Nem tão-pouco os poemas redundam numa mera descrição física desses espaços. Parece o espraiar dos versos, várias vezes ultrapassando a segunda dezena de sílabas, contradizer uma viagem que é essencialmente vertical, de confronto com o estranho em nós. Em determinados momentos das viagens, quando se conjugam determinadas circunstâncias, pode dar-se um encontro com o que desconhecíamos de nós – com o que, embora nosso familiar, ali se nos ilumina estranhamente. (Un)heimlich ou «je suis étranger chez moi» (p. 16). E não são só apenas circunstâncias relacionadas com o contexto físico – mas também com o mundo humano (não são viagens solitárias, estas). O movimento vertical também é uma ida ao encontro de alguma particularidade que diga algo sobre a essência do espaço. Qualquer viagem proporciona, desde logo, um confronto com o outro (e, por extensão, com o outro em nós). Por exemplo, num poema intitulado «Porto» (p. 26), a brincadeira de crianças com «bocas besuntadas» em torno de uma mesa, onde abundavam torresmos e vinho, converte aquele espaço num lugar. Lá o desejo de cada um consubstancia-se, espraia-se. Infere-se consecutivamente que os poemas possam dizer também de uma certa resistência dos espaços à uniformização identitária que o capitalismo desencadeia. Trata-se de, através da «visão profunda» (expressão roubada a Jorge de Sena), departindo, o poeta restituir algum brilho ao que se parece com ruínas. Mas a questão é que esse brilho do espaço não é necessariamente intemporal, antes se inscreve num tempo preciso que entretanto passou. Em consequência, o olhar fica toldado pelo rastro luzidio daquilo que se esfarelou. Portanto, mais do que um livro sobre o espaço, parece-me um livro sobre o tempo. São poemas directamente narrativos constituídos por memórias pessoais que se preservaram. Resumindo: (i) é estabelecido com o leitor um pacto autobiográfico; (ii) o que comparece no poema não pretende resumir o que foram aquelas viagens; (iii) nem tão-pouco se pretende dizer o que são aqueles espaços; (iv) embora seja sugerido que aqueles espaços podem ser lugares onde não só o eu se (re)vela e onde um saber sobre o mundo sobrevém; (v) portanto, o poema, como o diz o professor de poesia em Poesia de Lee Chang-dong, pode ser feito a partir de qualquer coisa, sobretudo num tempo poético de escassa inovação formal, de conformismo pós-aurático, de esboroamento social de projectos emancipatórios; (vi) a escrita consiste numa subtileza potenciada pela atenção de um sujeito permeável.


«View-Master»

I

Uma luminosa tarde de Inverno, contra as melhores expectativas. O sol rasante enche um dia pardacento. Entra pela casa adentro, desfere um golpe na cristaleira. A epifania está em deter-se em detalhes deste tipo, não é tanto algo que aconteça ao sujeito à revelia da sua vontade. Isto é: o poema é um acto consciente de resistência ao que nos embrutece que se renova a cada momento. A matéria do poema provém do mais prosaico e exprime-se na linguagem a ele mais apropriada: a despojada de retórica, próxima da narrativa (pese embora o uso de léxico que nos acostumamos a considerar ‘poético’). Nessa luz habita a intuição do fim, do aluimento. A voz do outro faz-se ouvir e interrompe a auto-absorção provocada pela entrada da luz (che vuoi?). O poema é consequência de um processo de escuta dos pequenos sons e de observação das minudências que perfazem mais um dia e é erigido com a sensibilidade média expectável pelos leitores de poesia (o recurso a léxico simbolista, ou da linha poética que do simbolismo vem brotando, ilustra-o, como o disse). É consequência de uma desaceleração. O verso espraia-se como para dizer o mais possível de um mundo que obstinadamente não se entrega. Se o mundo parece embotado, há um verso ou um poema que o poderá salvar. E não só ao poeta, mas também ao outro, que assinala a impossibilidade de um nós, essa vila dissemelhante e anómala, encontrando-se reduzido a eco para que não seja diminuído o êxtase poético. Isto é, o outro subsumido pelo «lodo lacustre» (p. 38).

Santos Mártires (Lx)

e quando (a meio do Inverno) já só contamos com a frialdade dos dias
afundados numa tarde azul – a luz oblíqua desferida sobre a cristaleira –
mantas herdadas de dezembros mais frios afogadas numa feérica luz
de últimos dias («viste o meu espelho»); quase silêncio e a televisão acesa

lá muito em baixo, alguns vultos de casais junto das águas do lago –
à margem da toada dos cães que latem (aqui ao lado) no logradouro vizinho
e dos filhos de estranhos que choram em apartamentos de outros prédios;
(«o espelho») a vaga toada de uma festa no terraço – uma boda de Inverno

apagam-se as gambiarras; um morrão pontuando o reflexo de uma janela –
logo um instante dourado que sobre tudo se abate e (tudo) transforma em silêncio;
fitando a escuridão das águas e as lantejoulas varridas pela brisa para o lodo da margem:
ao fundo da sala, sempre a luz sobre a cristaleira a morrer às nossas costas (p. 37)


II

Acordar com chuva não é prazeroso: o mundo parece apertar o cerco. O sujeito poético está momentaneamente fora de si, encontra-se num estado transitório, em travessia, entre o sonho e o real. O espelho – que pode ser lido como o quarto onde o poeta acorda, se supusermos uma metáfora de genitivo – não devolve alguma totalidade que console. No fundo, acordar é uma castração diária: a imersão forçada no mundo da linguagem, da ordem, da estrutura. O retardar da vinda das palavras, e com ele o da subjectividade, descentra o sujeito, torna-o permeável à memória, onde, contudo, não se pode ancorar. Se o mundo não pode ser substituído, subentendendo-se que este por si sobeja, restam as palavras, que ao outro competirá ensinar. Toda a exterioridade, toda a transcendência onde o eu se possa ancorar dependem da abertura incondicional ao outro. Caminhar sem medo, verticalmente, não consiste em entrincheirar-se numa identidade, antes abrir-se ao outro, deixá-lo enriquecer e relançar os dados, ser através dele que o desejo se espraie até nos confrontarmos novamente com o estranho em nós. E é com este gesto que reaprendemos o mundo – que «não cessa de nascer, de aparecer e desaparecer / no meio das mais inúteis palavras», como dizem os belos versos de António Franco Alexandre contidos no primeiro de Quatro Caprichos. Já agora: também o leitor deverá estar disposto a sacrificar as suas convicções, a sua mundividência, a deixar que o mundo se reescreva com as palavras do outro. Faz isto parte do prazer do texto, tal como o enunciou Roland Barthes.


São Paulo (Lx)

se chove quando acordamos, o travo das palavras rasuradas contra o palato
arranha-nos o veludo dos sonhos e enovela na língua um sabor redondo
a tojo mato e canela guardado no fundo da garganta num ténue engulho de mel;
um subtilíssimo fio de dor que, por pudor, nos faz guardar para nós esse matinal
verbo primeiro – já poucas saídas para as palavras no espelho do quarto

outra vez o mote da memória farejando oníricas tocas: ocos castanheiros virentes
prometendo fraternais fogueiras – às escondidas dos guardas e dos caseiros; o bolbo
demasiado volumoso por detrás da glote; «talvez agora a chuva soerga da prisão da terra
os odores dolorosamente belos das essências primordiais» – e depois de mais uma noite
branca nasça limpo o céu de Dezembro e se não estiole o fio azul da crina de Dionísio

«plátanos, freixos, cedros, aveleiras», diz-me tudo outra vez, «álamos, salgueiros»;
se não há já pigmentos com que pintar outra vez o mundo – nem cordas-do-mato
enlaçadas nos galhos – ensina-me as palavras (que no escuro ainda eram as minhas)
para te prender ao chão e podermos caminhar sem medo – do nó chegado ao pescoço
do nosso anjo da guarda – no bosque das árvores de que já não conhecemos os nomes (p. 35)




Bibliofilmografia
Alexandre, António Franco, Quatro Caprichos, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999
Barthes, Roland, O prazer do texto, Trad. Margarida Barahona, Lisboa, Edições 70, 1973
Chang-dong, Lee, Shi, UniKorea Pictures, Pine House Film, 2010
Sarrazola, Alexandre, View-Master, Lisboa, Língua Morta, 2013
Sena, Jorge, Uma arte de música, Lisboa, Moraes Editores, 1968





[Também n'O Melhor Amigo]



3.6.11

Cartas e amor


Isto foi o que escrevi para a Câmara Municipal de Famalicão, por ter sido júri no âmbito de um concurso literário de cartas de amor. Em troca recebi um licor caseiro e uma comparação, tão inédita quão inverosímil, a, pasmem-se, Barack Obama.


É incrível como o amor é uma criação da linguagem; é, exclusivamente, simbólico. É o resultado do que nos distingue dos demais animais: o facto de pensarmos, sentirmos e desejarmos através de uma linguagem. Apesar de não constituir uma necessidade biológica, o amor não deixa de nos ser essencial.
Foi Álvaro de Campos quem escreveu o célebre verso que, provocadoramente, diz que «as cartas de amor são ridículas». Este verso implica necessariamente que o amor também seja ridículo. E o ridículo do amor é ser um discurso; cosa mentale, portanto. Campos acharia significativo acusar Pessoa (o autor das cartas) o excessivo platonismo, também presente no poema IV de «Passos da Cruz»: «Ó tocadora de harpa, se eu beijasse / Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!». O verdadeiro desígnio do amador estaria longe de ser a consumação carnal, mas tão-só o captar da essência do ser da tocadora de harpa pelo beijo do gesto delicado dela. O homem é um ser de linguagem e o amor é cultura. Mas, nestas coisas como noutras, o que pensa o sujeito não se destrinça do que sente e é o sujeito. Assim a afirmação de Campos implicaria também o ridículo da cultura e da linguagem, essas que o próprio engenheiro, nos seus poemas, acusa, condena, e que foram sempre a sua doença (e a nossa).
A cousa amada, por seu turno, é o complemento narcísico do que julgamos nos faltar. Isto é, imaginamos no outro o que gostaríamos que nos pertencesse. Por isso faz sentido o verso de Herberto Helder do poema «Transforma-se o amador na cousa amada», o qual constitui uma reescrita do soneto camoniano: «O amador é um martelo que esmaga / Que transforma a cousa amada». Daí que a carta de amor seja não raro a reivindicação assertiva daquilo que nos falta e a constatação revoltada da insuficiência do amor que nos é concedido pelo outro. Isto por uma razão: apenas imaginariamente é concebível a nossa completude enquanto humanos. Há-de faltar-nos sempre algo, e é isto outro traço que nos define – a nossa limitação. Ao mesmo tempo, o amor dar-nos-ia, paradoxalmente, esse surplus que constitutivamente não possuímos. Todavia a chave da porta do nosso ser pura e simplesmente não se encontra.
As cartas de amor oscilam entre a crença feroz naquele encontro e o desencanto mais cruel. Porque, inevitavelmente, o amor também produz o medo da perda da cousa amada, como o salientara o filósofo francês Roland Barthes, na obra Fragmentos de um Discurso Amoroso. Mais uma razão para as cartas de amor serem ridículas (dado que suspendemos momentaneamente, ou desrespeitamos definitivamente, as regras do jogo que criámos). Ou, então, mais uma razão para as escrevermos – para lidarmos com um medo do qual não podemos fugir. E como se lida com esse medo? Percorrendo esse vão que nos separa daquilo que o amor algures nos dá – com a carta, graças a ela, as coisas e o outro parecem presentes, e é isso que todos queremos.