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30.3.24

É o teu topos

Outra história, esta do mundo da ficção.

Quignard lembra uma narrativa de Fedro, uma fábula.

Uma cabra, não se sabe bem como, estava no terraço alto de uma casa de campo e começou a insultar, lá de cima, um lobo que tinha uma perna partida e que estava lá bem em baixo, no chão. A cabra insultou o lobo, chamou-lhe nomes, disse que o lobo era um fraco, um cobarde, etc. O lobo permaneceu calado.

Depois, finalmente, levantou a cabeça e respondeu:

“Não és tu quem me insulta, é o teu tópos”!

Ou seja, não és tu quem me insulta, é a tua posição; é o lugar (tópos) momentâneo que ocupas que me insulta.

É uma bela fábula. Pensar nos poderes (e nos seus abusos) que são meramente originados pelo tópos, pelo lugar, pela posição momentânea em que as pessoas estão.

O poder que depende do lugar momentâneo em que as pessoas estão é um poder frágil, claro.

O verdadeiro poder humano está no que ele consegue fazer com os pés bem assentes no chão, com sua cabeça e com os seus braços — dois, um ou nenhum.

Gonçalo M. Tavares, Expresso, 29.03.2024

16.6.23

Bloom, Bloom — um caso que, vontade de ser senhor, e enfim

Ele vem à tarde. As canções dela.
Plasto. O busto da fonte em memória de sir Philip Crampton. Quem era ele?
— Como está? — disse Martin Cunningham, levantando a palma da mão à testa em saudação.
— Ele não nos vê — disse o Sr. Power. — Sim, vê. Como está?
— Quem? — disse o Sr. Dedalus.
— Blazes Boylan — disse o Sr. Power. — Ali vai ele a arejar os caracóis.
No preciso momento em que eu estava a pensar.
O Sr. Dedalus inclinou-se para cumprimentar. Da porta do Red Bank o disco branco de um chapéu de palha luziu em resposta: passou. 
O Sr. Bloom passou em revista as unhas da mão esquerda, depois as da mão direita. As unhas, sim. Há mais alguma coisa nele que elas ela veja? Fascinação. O pior homem de Dublin. Isso mantém-no vivo. Elas por vezes pressentem o que uma pessoa é. Instinto. Mas um tipo daqueles. As minhas unhas. Estou só a olhar para elas: bem aparadas. E depois: a pensar sozinha. Corpo a ficar um pouco flacidozito.

James Joyce, Ulysses, trad. Jorge Vaz de Carvalho

12.11.18

Um olhar calmo sobre a maldade e a inocência

Mas agora, ao aperceber-se do estado de alma de Eduard, esta proposta transformou-se para a baronesa em projecto firme, e quanto mais depressa esta decisão ganhava vulto dentro dela, mais lisonjeava exteriormente os desejos de Eduard, pois ninguém se dominava tanto como esta mulher, e um tal domínio sobre nós próprios, em casos excepcionais, habitua-nos a tratar com dissimulação até mesmo um caso normal, inclina-nos, já que exercemos uma tal força sobre nós próprios, a estender o nosso domínio sobre os outros, de modo a compensar-nos, em certa medida, com os nossos sucessos exteriores, aquilo que nos falta interiormente.
A esta maneira de ser associa-se geralmente uma espécie de secreto prazer malévolo em constatar a cegueira dos outros, a inconsciência com que se lançam numa armadilha. Não nos regozijamos somente com o sucesso presente, regozijamo-nos também com a vergonha que os há-de surpreender. E, assim, a baronesa foi suficientemente maliciosa para convidar Eduard, juntamente com Charlotte, a assistir às vindimas nas suas propriedades e para responder à pergunta de Eduard, que pretendia saber se podiam levar Ottilie, de uma forma que ele poderia interpretar, se lhe aprouvesse, em seu favor.
Eduard falava já deleitado da região maravilhosa, do grande rio, das colinas, dos penhascos e das vinhas, dos velhos castelos, dos passeios de barco, das alegrias da vindima, do lagar, e assim por diante, ao mesmo tempo que, na inocência do seu coração, se regozijava já antecipadamente bem alto com a impressão que tais cenas iriam provocar na alma pueril de Ottilie. Nesse momento, viram Ottilie aproximar-se, e a baronesa disse rapidamente a Eduard que era melhor ele não dizer nada sobre este projecto de viagem no Outono, pois, normalmente, aquilo com que nos alegramos com muita antecedência acaba por não se realizar. Eduard prometeu, obrigou-a, no entanto, a ir mais depressa ao encontro de Ottilie, e acabou por se lhe adiantar, com alguns passos de avanço, ao encontro da encantadora jovem. Uma profunda alegria transparecia de todo o seu ser. Beijou-lhe a mão, na qual colocou um ramo de flores campestres que colhera pelo caminho. Ao observá-lo, a baronesa sentiu no seu íntimo quase uma amargura, pois, ainda que não pudesse aceitar aquilo que nesta inclinação podia haver de culpável, de modo algum lhe era possível perdoar àquela rapariguinha novata e insignificante o que nessa inclinação havia de delicado e encantador.

Goethe, As afinidades electivas


11.7.18

A partir de Agustina

O ponto máximo de perversidade é o pressentimento da força — a cumplicidade é só uma estratégia para enfraquecer, evitando-se obstáculos futuros. As almas muito inseguras que sem a caução alheia para cada passo — incluindo os que a própria consciência julga como perversos — são incapazes de fazer o mínimo. Uma insegurança que é sobretudo filha do ressentimento e da manha. Farejam os que estão em suspenso para o exercício do seu magistério mesquinho. Como sabemos, o poder ganha-se muitas vezes não no incremento da força individual, antes na subtracção da força dos que podem ameaçar. O pequeno ódio fomentado com astúcia, o acesso de febre fomentado por certas palavras, envoltas em celofane, são o necessário para conquistar mais um palmo de terreno, num mundo pequeno para pessoas com sapatos altos. A simpatia como técnica negocial, na expectativa de lucros futuros, e não propriamente entrega ingénua ou intencionalmente bondosa. No mundo existem carros longos e comentários aprazíveis. Hoje é mais um dia em que tudo se joga ao milímetro: uma achega, palavras doces como veneno, o uso ponderado do elogio, em busca da cumplicidade que caucione o mal, e, em consequência, alguém irá cair, mais ou menos devagar, receberemos essa energia com gáudio.

Caminham como se o mundo fosse revestido a alcatifa e dividem os homens entre os que pisam a terra e os que sobrevivem uns degraus acima do ar. 


6.7.18

O microscópio de Agustina


Custódio não bebia. Repugnava-lhe o vinho; o velho hábito das casas de lavoura, onde o criado mais antigo fica incumbido de descer à adega a encher a cântara para as refeições, era cumprido por ele. Quina sabia que ele não aproveitaria jamais aquele direito quase oficial dum gole extra à beira da pipa. Porém, não raro subtraía algumas canadas para Libória, que gostava de fazer pactuar consigo, pois tinha uma necessidade absoluta de angariar protecção na consciência dos outros, e, pela coacção da cumplicidade, fazê-los seus aliados, sobretudo quando os pressentia inimigos.

Agustina Bessa-Luís, A Sibila


10.2.18

Alguma beleza, eis o que fica, quando fica

OROFERNES
(1915)

Este que no tetradracma
parece iluminar seu rosto com um sorriso,
seu formoso, fino rosto,
este é Orofernes, filho de Ariarates.

Menino e moço o expulsaram da Capadócia,
do grande palácio do seu pai,
e a crescer o mandaram para a Jónia,
entre gentes remotas esquecido.

Ah, noites maravilhosas da Jónia,
onde, sem medos e à grega,
conheceu a plenitude do prazer.
No seu coração, sempre asiático.
Mas grego pelos modos e a língua,
ornado de turquesas, vestido à grega,
ungido seu corpo com aromas de jasmim
e, entre os formosos moços da Jónia,
o mais formoso, ele, o mais ideal.

Depois, quando entraram os sírios
na Capadócia e o fizeram rei,
entregou-se à sua realeza
para gozar cada dia de um modo novo,
para arrecadar com avidez ouro e prata,
para se deleitar e se envaidecer,
vendo brilhar empilhadas as riquezas.
Quanto ao cuidado do país e do governo,
ignorava o que em seu redor sucedia.

Os capadócios depressa o expulsaram
e refugiou-se na Síria, no palácio
de Demétrio, a divertir-se e a preguiçar.

Um dia, porém, insólitos pensamentos
irromperam no seu ócio prolongado;
recordou que por sua mãe Antioquida
e por aquela vetusta Estratonice,
procedia da casa real da Síria
e que quase era um Selêucida.
Prescindiu por um pouco da lascívia e da embriaguez,
e desastradamente, meio aturdido,
intentou maquinar algo,
fazer algo, planear alguma coisa,
mas fracassou miseravelmente e foi aniquilado.

O seu fim, escreveu-se algures, talvez, e perdeu-se;
ou talvez a história, passando por ele,
com razão, não achasse oportuno,
consignar tamanha insignificância.

Este que no tetradracma
deixou o rasto do seu encanto juvenil,
uma luz da sua poética beleza,
a lembrança sensual dum rapaz da Jónia,
é Orofernes, filho de Ariarates.

Konstantinos Kavafis, 145 poemas




10.3.17

Em média: as pessoas aperfeiçoam mais os engenhos
mecânicos da corrupção e das traições mesquinhas
que os da hospitalidade. Os perigos
que observam um corpo são produzidos incessantemente
em qualquer fábrica desconhecida
mas eficaz.
Há muito perigo no mundo
- terás pois (não te aborreças já) a tua bela parte.

Uma viagem à Índia, II.31, Gonçalo M. Tavares