1. Pornografia e erotismo
Em O Prazer do texto,
Roland Barthes distinguia dois textos: o pornográfico e o erótico. O primeiro
revelava tudo e fazia-o duma forma ostensiva, enquanto o segundo apenas deixa
entrever o seu sentido, vela e desvela, re-vela o sentido. Isto é, o primeiro é
desassombradamente realista, padece de um excesso de precisão, já o segundo é
mais sugestivo, desta forma manipulando perversamente o desejo do leitor.
Analogamente ao estádio anal, o texto erótico guarda o sentido, repele-o quando e se o entender, tal como a criança faz com as fezes, por si identicadas com ouro (Guy Rosolato).
Quando lemos um romance, o que nos motiva é a promessa de uma revelação
progressiva: importa conhecer o fim da história, fazer um sentido. Roland Barthes toma uma
posição: o texto deve ser erótico, deve montar uma encenação de
aparecimento/desaparecimento do objecto de desejo. Qualquer perversão usa ser desejo
de dominação pelo outro. Na narrativa tradicional, dominamos, contudo, sempre o
desenrolar da plot. O que suscita
prazer na leitura é essa relutância ao apaziguamento, diz Roland Barthes, que
avança com um exemplo dum texto pornográfico: Bouvard et Pécuchet de Gustave Flaubert. Eis um frase ilustrativa:
«Toalhas, lençóis, guardanapos pendiam verticalmente, presos por molas de
madeira a cordas estendidas.»
A pornografia, nesta acepção, não é perversa: é honesta. Não
promete nada que não possa cumprir, cumpre expectativas. Não joga com o nosso
desejo, não nos deixa em suspenso. O risco é que o pode deixar empedernido. O texto pornográfico deixa-nos no ponto em que já nada podemos esperar. É sintoma duma suspeita
insanável em relação ao outro e de um assentimento a uma solitude
auto-subsistente, espécie de recriação imaginária do seio materno
irremediavelmente perdido.
Nos filmes de Béla Tarr, encontramos uma forma de pornografia, uma
vez que todos os momentos da narrativa nos são dados. Por exemplo, acompanhamos
todo o movimento de uma personagem que sobe as escadas, não se dando o caso de
acedermos a dois planos, com corte pelo meio: um com a personagem imediatamente
antes de as subir, e outro já depois de executado o movimento. O corte, a
elipse que a montagem determinou, é preenchida por nós. No cinema mainstream, o espectador preenche apenas
estes hiatos minúsculos. O cinema de David Lynch já nos deixa autênticos
buracos por preencher. Já em Béla Tarr, a dificuldade está no seguinte: não
temos que preencher nada, não é cinema de montagem, parece que o espectador é repelido.
Claro que podemos ver aqui uma forma de menorização, por completa indigência
cognitiva. Mas não creio Tarr capaz de tanto. Aquele apaziguamento não é nada
que se deseje – materializa, aliás, a derrota do desejo. Deseja-se, quando
muito, uma suspensão efectiva do desejo. O cinema passa a ser, em Béla Tarr, a
fórmula perfeita do ascetismo – com base, ainda por cima, sensível, imanente,
para que contribui sobremaneira a atenção concedida ao lateral. Diz o cineasta:
«um filme não pode em caso nenhum ser identificado com uma simples história
humana ou, mais exactamente, [é preciso colocar] esta história humana num
sistema de relações (...) onde uma parede possa ter a mesma significação
dramática que uma acção que se desenrola entre duas pessoas.» Travellings não raro orbitando em torno
do impreciso ou vulgar, planos fixos e demorados, nenhuma emissão do
espectador. Béla Tarr desmonta, no cinema, a arte de sublinhar (como o faz, mutatis mutandis, Herberto na
literatura). Nada será escamoteado, não há espaço para imaginar, aquilo que o
filme dá chega. Embora se fale de Herberto como um autor altamente imaginativo,
creio que o efeito da leitura é antes a cegueira, pois o leitor nada vê quando
o lê – e não por falta de vontade ou competência. Fica o leitor completamente
estarrecido, horrorizado, é-lhe por conseguinte exigido um esforço hercúleo
para não ficar petrificado. Converte-se em receptor, a pior ofensa que se pode
fazer a um leitor.
Os planos de Tarr são pornografia naquela acepção, uma forma de totalitarismo, ou, se quisermos, uma totalidade que consola, aquilo
é-nos suficiente, aquilo completa: «Não esperando nada a não ser um fim que
chegará quando puder, tendo sido aliviado de todas as preocupações de
causalidade, o espectador satisfaz-se com a força do presente, ou antes com a
da presença, e mergulha no prazer da imanência.» (Stéphane Bouquet) A compensação possível pela paragem da história e pelo anoitecer das grandes narrativas (Lyotard).
Ulysses confronta-nos com a mesmidade do conhecido, um realismo extremado
dirigido ao crítico que se ocupará da obra durante quatrocentos anos. Joyce, o
sintoma, diz Lacan: excessivos detalhes, o banal elevado a epopeia, para
dizê-lo rápido, tudo à atenção do crítico. Isto é, este texto modernista
incorpora já uma possível leitura atribuível ao crítico (como o paciente
endereça uma selecção de sintomas ao analista: aqueles que este é suposto
interpretar). A obra é já uma primeira teoria da obra, diz-nos Slavoj Zizek.
Não esperamos nada, senão o dia-a-dia na sua redundância, interrompido por
algumas reflexões feitas em estilos distintos. É abolida tanto a surpresa como
o suspense.
Short Movies de Gonçalo M. Tavares é, noutra escala, algo do mesmo tipo: vemos
todos os frames, tal como a criança
que lê letra a letra.
2. Dança, imagem e poesia
Nada esperam as personagens de Béla Tarr. Habitantes de um lodaçal
pardacento que sobre eles exerce uma pressão que lhes determina gestos,
conversas, expectativas. Os filmes de Béla Tarr, sobretudo os últimos,
incorporam, como o disse Jacques Rancière, aquilo que Deleuze designava por
imagens-tempo, «imagens em que a duração se torna manifesta e que é o próprio
estofo com que essas individualidades, chamadas situações ou personagens, são
tecidas.» São criaturas dessas imagens-tempo, feitas desta matéria voluptuosa.
Permeáveis, portanto, ao interior pardacento da Hungria. Tango de Satanás é um exemplo dessa ausência de horizonte, como cedo o entendera Estike. No final do filme, não se realiza o
sonho da comunidade. As linhas rectas desenhados pelos vencedores, como Irimias,
contrastam com os movimentos circulares, repetitivos, dos homens e mulheres
embriagados durante um baile na vila. Diz Gonçalo M. Tavares, em animalescos: «os homens da pré-história não faziam bailes,
pelo contrário, estavam sempre apressados, não andavam à roda como os malucos
que dançam, que dançar é também isso: não ter pressa, não ter medo, os animais
não dançam e os homens primitivos não dançavam». Dançar implica parar, não ter
pressa, é um gesto de resistência à «utopia cinética» (Sloterdijk) que a
modernidade vem configurando. Dançar, exercer movimentos inúteis, é uma ofensa
à comunidade. Dançar pressupõe, também, não se sentir ameaçado, não estar em
alerta permanente. Um tempo em que os homens não dancem é um tempo embrutecedor que coloca os homens sob permanente ameaça. Em suspenso. Os mais aptos serão os que funcionam, aqueles de quem esperamos
comportamentos previsíveis: «Obrigaram o corpo a comer, obrigaram-no a beber para evitar pô-lo a dançar» (Artaud). As personagens de Béla Tarr, todavia, dançam: não
têm saída, adivinha-se um dilúvio – estão, pelo menos, ocupadas. Poderíamos
dizer, outrossim: escreve-se poesia porque não se pode fazer outra coisa. Uma
das causas daquele maelstrom reside na proliferação de imagens, de simulacros
de simulacros, da perda referencial (Baudrillard). Mas não só: também da ausência de uma
referência icónica que unisse a comunidade, como sucedia na Idade Média
(Bragança de Miranda). Seria interessante estudar Tarkosvki a esta luz
(atendendo até ao seu fascínio pela arte bizantina). A dispersão das imagens
aboliu a possibilidade da imagem comum: só há imagens individuais. À poesia
talvez incumbisse criar uma imagem comum, à semelhança do que sucedia com o
mito.
[Também publicado no melhor amigo]
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