Estranho (lugar)
Mais
do que sobre a cultura e a geografia dos espaços em que o poeta esteve, View-Master
de Alexandre Sarrazola é sobre as breves eternidades que nos são concedidas
viver nesses espaços. Na poesia de um João Miguel Fernandes Jorge, por exemplo,
a presença do poeta em certos espaços pode motivar uma incursão pela história
e/ou cultura que os configuram. Alexandre Sarrazola não se perde nesses
meandros. Nem tão-pouco os poemas redundam numa mera descrição física desses
espaços. Parece o espraiar dos versos, várias vezes ultrapassando a segunda
dezena de sílabas, contradizer uma viagem que é essencialmente vertical, de
confronto com o estranho em nós. Em determinados momentos das viagens, quando
se conjugam determinadas circunstâncias, pode dar-se um encontro com o que
desconhecíamos de nós – com o que, embora nosso familiar, ali se nos ilumina
estranhamente. (Un)heimlich ou «je suis étranger chez moi»
(p. 16). E não são só apenas circunstâncias relacionadas com o contexto físico
– mas também com o mundo humano (não são viagens solitárias, estas). O
movimento vertical também é uma ida ao encontro de alguma particularidade que
diga algo sobre a essência do espaço. Qualquer viagem proporciona, desde logo,
um confronto com o outro (e, por extensão, com o outro em nós). Por exemplo,
num poema intitulado «Porto» (p. 26), a brincadeira de crianças com «bocas
besuntadas» em torno de uma mesa, onde abundavam torresmos e vinho, converte
aquele espaço num lugar. Lá o desejo de cada um consubstancia-se, espraia-se. Infere-se
consecutivamente que os poemas possam dizer também de uma certa resistência dos
espaços à uniformização identitária que o capitalismo desencadeia. Trata-se de,
através da «visão profunda» (expressão roubada a Jorge de Sena), departindo, o poeta restituir algum
brilho ao que se parece com ruínas. Mas a questão é que esse brilho do espaço
não é necessariamente intemporal, antes se inscreve num tempo preciso que
entretanto passou. Em consequência, o olhar fica toldado pelo rastro luzidio
daquilo que se esfarelou. Portanto, mais do que um livro sobre o espaço,
parece-me um livro sobre o tempo. São poemas directamente narrativos
constituídos por memórias pessoais que se preservaram. Resumindo: (i) é
estabelecido com o leitor um pacto autobiográfico; (ii) o que comparece no
poema não pretende resumir o que foram aquelas viagens; (iii) nem tão-pouco se
pretende dizer o que são aqueles
espaços; (iv) embora seja sugerido que aqueles espaços podem ser lugares onde
não só o eu se (re)vela e onde um saber sobre o mundo sobrevém; (v) portanto, o
poema, como o diz o professor de poesia em Poesia
de Lee Chang-dong, pode ser feito a partir de qualquer coisa, sobretudo num
tempo poético de escassa inovação formal, de conformismo pós-aurático, de
esboroamento social de projectos emancipatórios; (vi) a escrita consiste numa
subtileza potenciada pela atenção de um sujeito permeável.
«View-Master»
I
Uma
luminosa tarde de Inverno, contra as melhores expectativas. O sol rasante enche
um dia pardacento. Entra pela casa adentro, desfere um golpe na cristaleira. A
epifania está em deter-se em detalhes deste tipo, não é tanto algo que aconteça
ao sujeito à revelia da sua vontade. Isto é: o poema é um acto consciente de
resistência ao que nos embrutece que se renova a cada momento. A matéria do
poema provém do mais prosaico e exprime-se na linguagem a ele mais apropriada:
a despojada de retórica, próxima da narrativa (pese embora o uso de léxico que
nos acostumamos a considerar ‘poético’). Nessa luz habita a intuição do fim, do
aluimento. A voz do outro faz-se ouvir e interrompe a auto-absorção provocada
pela entrada da luz (che vuoi?). O
poema é consequência de um processo de escuta dos pequenos sons e de observação
das minudências que perfazem mais um dia e é erigido com a sensibilidade média
expectável pelos leitores de poesia (o recurso a léxico simbolista, ou da linha
poética que do simbolismo vem brotando, ilustra-o, como o disse). É
consequência de uma desaceleração. O verso espraia-se como para dizer o mais
possível de um mundo que obstinadamente não se entrega. Se o mundo parece
embotado, há um verso ou um poema que o poderá salvar. E não só ao poeta, mas
também ao outro, que assinala a impossibilidade de um nós, essa vila
dissemelhante e anómala, encontrando-se reduzido a eco para que não seja
diminuído o êxtase poético. Isto é, o outro subsumido pelo «lodo lacustre» (p.
38).
Santos Mártires (Lx)
e quando (a meio do Inverno) já só
contamos com a frialdade dos dias
afundados numa tarde azul – a luz
oblíqua desferida sobre a cristaleira –
mantas herdadas de dezembros mais frios
afogadas numa feérica luz
de últimos dias («viste o meu
espelho»); quase silêncio e a televisão acesa
lá muito em baixo, alguns vultos de
casais junto das águas do lago –
à margem da toada dos cães que latem
(aqui ao lado) no logradouro vizinho
e dos filhos de estranhos que choram em
apartamentos de outros prédios;
(«o espelho») a vaga toada de uma festa
no terraço – uma boda de Inverno
apagam-se as gambiarras; um morrão
pontuando o reflexo de uma janela –
logo um instante dourado que sobre tudo
se abate e (tudo) transforma em silêncio;
fitando a escuridão das águas e as
lantejoulas varridas pela brisa para o lodo da margem:
ao fundo da sala, sempre a luz sobre a
cristaleira a morrer às nossas costas (p.
37)
II
Acordar
com chuva não é prazeroso: o mundo parece apertar o cerco. O sujeito poético
está momentaneamente fora de si, encontra-se num estado transitório, em
travessia, entre o sonho e o real. O espelho – que pode ser lido como o quarto
onde o poeta acorda, se supusermos uma metáfora de genitivo – não devolve
alguma totalidade que console. No fundo, acordar é uma castração diária: a
imersão forçada no mundo da linguagem, da ordem, da estrutura. O retardar da
vinda das palavras, e com ele o da subjectividade, descentra o sujeito, torna-o
permeável à memória, onde, contudo, não se pode ancorar. Se o mundo não pode
ser substituído, subentendendo-se que este por si sobeja, restam as palavras,
que ao outro competirá ensinar. Toda a exterioridade, toda a transcendência
onde o eu se possa ancorar dependem da abertura incondicional ao outro.
Caminhar sem medo, verticalmente, não consiste em entrincheirar-se numa
identidade, antes abrir-se ao outro, deixá-lo enriquecer e relançar os dados,
ser através dele que o desejo se espraie até nos confrontarmos novamente com o
estranho em nós. E é com este gesto que reaprendemos o mundo – que «não cessa
de nascer, de aparecer e desaparecer / no meio das mais inúteis palavras», como
dizem os belos versos de António Franco Alexandre contidos no primeiro de Quatro Caprichos. Já agora: também o
leitor deverá estar disposto a sacrificar as suas convicções, a sua
mundividência, a deixar que o mundo se reescreva com as palavras do outro. Faz
isto parte do prazer do texto, tal como o enunciou Roland Barthes.
São Paulo (Lx)
se chove quando acordamos, o travo das
palavras rasuradas contra o palato
arranha-nos o veludo dos sonhos e
enovela na língua um sabor redondo
a tojo mato e canela guardado no fundo
da garganta num ténue engulho de mel;
um subtilíssimo fio de dor que, por
pudor, nos faz guardar para nós esse matinal
verbo primeiro – já poucas saídas para
as palavras no espelho do quarto
outra vez o mote da memória farejando
oníricas tocas: ocos castanheiros virentes
prometendo fraternais fogueiras – às
escondidas dos guardas e dos caseiros; o bolbo
demasiado volumoso por detrás da glote;
«talvez agora a chuva soerga da prisão da terra
os odores dolorosamente belos das
essências primordiais» – e depois de mais uma noite
branca nasça limpo o céu de Dezembro e
se não estiole o fio azul da crina de Dionísio
«plátanos, freixos, cedros, aveleiras»,
diz-me tudo outra vez, «álamos, salgueiros»;
se não há já pigmentos com que pintar
outra vez o mundo – nem cordas-do-mato
enlaçadas nos galhos – ensina-me as
palavras (que no escuro ainda eram as minhas)
para te prender ao chão e podermos
caminhar sem medo – do nó chegado ao pescoço
do nosso anjo da guarda – no bosque das
árvores de que já não conhecemos os nomes (p.
35)
Bibliofilmografia
Alexandre,
António Franco, Quatro Caprichos,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1999
Barthes,
Roland, O prazer do texto, Trad.
Margarida Barahona, Lisboa, Edições 70, 1973
Chang-dong,
Lee, Shi, UniKorea Pictures, Pine
House Film, 2010
Sarrazola,
Alexandre, View-Master, Lisboa,
Língua Morta, 2013
Sena,
Jorge, Uma arte de música, Lisboa,
Moraes Editores, 1968
[Também n'O Melhor Amigo]
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