2.8.13

Até onde não sei

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Estranho (lugar)

Mais do que sobre a cultura e a geografia dos espaços em que o poeta esteve, View-Master de Alexandre Sarrazola é sobre as breves eternidades que nos são concedidas viver nesses espaços. Na poesia de um João Miguel Fernandes Jorge, por exemplo, a presença do poeta em certos espaços pode motivar uma incursão pela história e/ou cultura que os configuram. Alexandre Sarrazola não se perde nesses meandros. Nem tão-pouco os poemas redundam numa mera descrição física desses espaços. Parece o espraiar dos versos, várias vezes ultrapassando a segunda dezena de sílabas, contradizer uma viagem que é essencialmente vertical, de confronto com o estranho em nós. Em determinados momentos das viagens, quando se conjugam determinadas circunstâncias, pode dar-se um encontro com o que desconhecíamos de nós – com o que, embora nosso familiar, ali se nos ilumina estranhamente. (Un)heimlich ou «je suis étranger chez moi» (p. 16). E não são só apenas circunstâncias relacionadas com o contexto físico – mas também com o mundo humano (não são viagens solitárias, estas). O movimento vertical também é uma ida ao encontro de alguma particularidade que diga algo sobre a essência do espaço. Qualquer viagem proporciona, desde logo, um confronto com o outro (e, por extensão, com o outro em nós). Por exemplo, num poema intitulado «Porto» (p. 26), a brincadeira de crianças com «bocas besuntadas» em torno de uma mesa, onde abundavam torresmos e vinho, converte aquele espaço num lugar. Lá o desejo de cada um consubstancia-se, espraia-se. Infere-se consecutivamente que os poemas possam dizer também de uma certa resistência dos espaços à uniformização identitária que o capitalismo desencadeia. Trata-se de, através da «visão profunda» (expressão roubada a Jorge de Sena), departindo, o poeta restituir algum brilho ao que se parece com ruínas. Mas a questão é que esse brilho do espaço não é necessariamente intemporal, antes se inscreve num tempo preciso que entretanto passou. Em consequência, o olhar fica toldado pelo rastro luzidio daquilo que se esfarelou. Portanto, mais do que um livro sobre o espaço, parece-me um livro sobre o tempo. São poemas directamente narrativos constituídos por memórias pessoais que se preservaram. Resumindo: (i) é estabelecido com o leitor um pacto autobiográfico; (ii) o que comparece no poema não pretende resumir o que foram aquelas viagens; (iii) nem tão-pouco se pretende dizer o que são aqueles espaços; (iv) embora seja sugerido que aqueles espaços podem ser lugares onde não só o eu se (re)vela e onde um saber sobre o mundo sobrevém; (v) portanto, o poema, como o diz o professor de poesia em Poesia de Lee Chang-dong, pode ser feito a partir de qualquer coisa, sobretudo num tempo poético de escassa inovação formal, de conformismo pós-aurático, de esboroamento social de projectos emancipatórios; (vi) a escrita consiste numa subtileza potenciada pela atenção de um sujeito permeável.


«View-Master»

I

Uma luminosa tarde de Inverno, contra as melhores expectativas. O sol rasante enche um dia pardacento. Entra pela casa adentro, desfere um golpe na cristaleira. A epifania está em deter-se em detalhes deste tipo, não é tanto algo que aconteça ao sujeito à revelia da sua vontade. Isto é: o poema é um acto consciente de resistência ao que nos embrutece que se renova a cada momento. A matéria do poema provém do mais prosaico e exprime-se na linguagem a ele mais apropriada: a despojada de retórica, próxima da narrativa (pese embora o uso de léxico que nos acostumamos a considerar ‘poético’). Nessa luz habita a intuição do fim, do aluimento. A voz do outro faz-se ouvir e interrompe a auto-absorção provocada pela entrada da luz (che vuoi?). O poema é consequência de um processo de escuta dos pequenos sons e de observação das minudências que perfazem mais um dia e é erigido com a sensibilidade média expectável pelos leitores de poesia (o recurso a léxico simbolista, ou da linha poética que do simbolismo vem brotando, ilustra-o, como o disse). É consequência de uma desaceleração. O verso espraia-se como para dizer o mais possível de um mundo que obstinadamente não se entrega. Se o mundo parece embotado, há um verso ou um poema que o poderá salvar. E não só ao poeta, mas também ao outro, que assinala a impossibilidade de um nós, essa vila dissemelhante e anómala, encontrando-se reduzido a eco para que não seja diminuído o êxtase poético. Isto é, o outro subsumido pelo «lodo lacustre» (p. 38).

Santos Mártires (Lx)

e quando (a meio do Inverno) já só contamos com a frialdade dos dias
afundados numa tarde azul – a luz oblíqua desferida sobre a cristaleira –
mantas herdadas de dezembros mais frios afogadas numa feérica luz
de últimos dias («viste o meu espelho»); quase silêncio e a televisão acesa

lá muito em baixo, alguns vultos de casais junto das águas do lago –
à margem da toada dos cães que latem (aqui ao lado) no logradouro vizinho
e dos filhos de estranhos que choram em apartamentos de outros prédios;
(«o espelho») a vaga toada de uma festa no terraço – uma boda de Inverno

apagam-se as gambiarras; um morrão pontuando o reflexo de uma janela –
logo um instante dourado que sobre tudo se abate e (tudo) transforma em silêncio;
fitando a escuridão das águas e as lantejoulas varridas pela brisa para o lodo da margem:
ao fundo da sala, sempre a luz sobre a cristaleira a morrer às nossas costas (p. 37)


II

Acordar com chuva não é prazeroso: o mundo parece apertar o cerco. O sujeito poético está momentaneamente fora de si, encontra-se num estado transitório, em travessia, entre o sonho e o real. O espelho – que pode ser lido como o quarto onde o poeta acorda, se supusermos uma metáfora de genitivo – não devolve alguma totalidade que console. No fundo, acordar é uma castração diária: a imersão forçada no mundo da linguagem, da ordem, da estrutura. O retardar da vinda das palavras, e com ele o da subjectividade, descentra o sujeito, torna-o permeável à memória, onde, contudo, não se pode ancorar. Se o mundo não pode ser substituído, subentendendo-se que este por si sobeja, restam as palavras, que ao outro competirá ensinar. Toda a exterioridade, toda a transcendência onde o eu se possa ancorar dependem da abertura incondicional ao outro. Caminhar sem medo, verticalmente, não consiste em entrincheirar-se numa identidade, antes abrir-se ao outro, deixá-lo enriquecer e relançar os dados, ser através dele que o desejo se espraie até nos confrontarmos novamente com o estranho em nós. E é com este gesto que reaprendemos o mundo – que «não cessa de nascer, de aparecer e desaparecer / no meio das mais inúteis palavras», como dizem os belos versos de António Franco Alexandre contidos no primeiro de Quatro Caprichos. Já agora: também o leitor deverá estar disposto a sacrificar as suas convicções, a sua mundividência, a deixar que o mundo se reescreva com as palavras do outro. Faz isto parte do prazer do texto, tal como o enunciou Roland Barthes.


São Paulo (Lx)

se chove quando acordamos, o travo das palavras rasuradas contra o palato
arranha-nos o veludo dos sonhos e enovela na língua um sabor redondo
a tojo mato e canela guardado no fundo da garganta num ténue engulho de mel;
um subtilíssimo fio de dor que, por pudor, nos faz guardar para nós esse matinal
verbo primeiro – já poucas saídas para as palavras no espelho do quarto

outra vez o mote da memória farejando oníricas tocas: ocos castanheiros virentes
prometendo fraternais fogueiras – às escondidas dos guardas e dos caseiros; o bolbo
demasiado volumoso por detrás da glote; «talvez agora a chuva soerga da prisão da terra
os odores dolorosamente belos das essências primordiais» – e depois de mais uma noite
branca nasça limpo o céu de Dezembro e se não estiole o fio azul da crina de Dionísio

«plátanos, freixos, cedros, aveleiras», diz-me tudo outra vez, «álamos, salgueiros»;
se não há já pigmentos com que pintar outra vez o mundo – nem cordas-do-mato
enlaçadas nos galhos – ensina-me as palavras (que no escuro ainda eram as minhas)
para te prender ao chão e podermos caminhar sem medo – do nó chegado ao pescoço
do nosso anjo da guarda – no bosque das árvores de que já não conhecemos os nomes (p. 35)




Bibliofilmografia
Alexandre, António Franco, Quatro Caprichos, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999
Barthes, Roland, O prazer do texto, Trad. Margarida Barahona, Lisboa, Edições 70, 1973
Chang-dong, Lee, Shi, UniKorea Pictures, Pine House Film, 2010
Sarrazola, Alexandre, View-Master, Lisboa, Língua Morta, 2013
Sena, Jorge, Uma arte de música, Lisboa, Moraes Editores, 1968





[Também n'O Melhor Amigo]



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