3.6.11

Cartas e amor


Isto foi o que escrevi para a Câmara Municipal de Famalicão, por ter sido júri no âmbito de um concurso literário de cartas de amor. Em troca recebi um licor caseiro e uma comparação, tão inédita quão inverosímil, a, pasmem-se, Barack Obama.


É incrível como o amor é uma criação da linguagem; é, exclusivamente, simbólico. É o resultado do que nos distingue dos demais animais: o facto de pensarmos, sentirmos e desejarmos através de uma linguagem. Apesar de não constituir uma necessidade biológica, o amor não deixa de nos ser essencial.
Foi Álvaro de Campos quem escreveu o célebre verso que, provocadoramente, diz que «as cartas de amor são ridículas». Este verso implica necessariamente que o amor também seja ridículo. E o ridículo do amor é ser um discurso; cosa mentale, portanto. Campos acharia significativo acusar Pessoa (o autor das cartas) o excessivo platonismo, também presente no poema IV de «Passos da Cruz»: «Ó tocadora de harpa, se eu beijasse / Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!». O verdadeiro desígnio do amador estaria longe de ser a consumação carnal, mas tão-só o captar da essência do ser da tocadora de harpa pelo beijo do gesto delicado dela. O homem é um ser de linguagem e o amor é cultura. Mas, nestas coisas como noutras, o que pensa o sujeito não se destrinça do que sente e é o sujeito. Assim a afirmação de Campos implicaria também o ridículo da cultura e da linguagem, essas que o próprio engenheiro, nos seus poemas, acusa, condena, e que foram sempre a sua doença (e a nossa).
A cousa amada, por seu turno, é o complemento narcísico do que julgamos nos faltar. Isto é, imaginamos no outro o que gostaríamos que nos pertencesse. Por isso faz sentido o verso de Herberto Helder do poema «Transforma-se o amador na cousa amada», o qual constitui uma reescrita do soneto camoniano: «O amador é um martelo que esmaga / Que transforma a cousa amada». Daí que a carta de amor seja não raro a reivindicação assertiva daquilo que nos falta e a constatação revoltada da insuficiência do amor que nos é concedido pelo outro. Isto por uma razão: apenas imaginariamente é concebível a nossa completude enquanto humanos. Há-de faltar-nos sempre algo, e é isto outro traço que nos define – a nossa limitação. Ao mesmo tempo, o amor dar-nos-ia, paradoxalmente, esse surplus que constitutivamente não possuímos. Todavia a chave da porta do nosso ser pura e simplesmente não se encontra.
As cartas de amor oscilam entre a crença feroz naquele encontro e o desencanto mais cruel. Porque, inevitavelmente, o amor também produz o medo da perda da cousa amada, como o salientara o filósofo francês Roland Barthes, na obra Fragmentos de um Discurso Amoroso. Mais uma razão para as cartas de amor serem ridículas (dado que suspendemos momentaneamente, ou desrespeitamos definitivamente, as regras do jogo que criámos). Ou, então, mais uma razão para as escrevermos – para lidarmos com um medo do qual não podemos fugir. E como se lida com esse medo? Percorrendo esse vão que nos separa daquilo que o amor algures nos dá – com a carta, graças a ela, as coisas e o outro parecem presentes, e é isso que todos queremos.

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