27.7.24

Well Known Nobodies


Surrealismo

Quando surgiu o surrealismo do dadaísmo, aumentou a atitude da grande negativa contra o mundo belicosamente distorcido que rejeitava qualquer forma de crença vulgar na realidade. Os surrealistas não se conformaram com a revolta estética; pretenderam emigrar da banalidade em todas as suas formas. A sua doutrina apresentava-se como teoria e prática da passagem à transcendência [o mito icárico]. Os surrealistas buscavam um além, no qual o inconsciente se fundisse com o fantástico e o surpreendente, para criar um anti-mundo. Postularam uma alternativa ao ser no seu conjunto. Como emigrados do lado sério da vida, exigiram o direito a residir no impossível.

Peter Sloterdijk, Reflexos primitivos

20.7.24

Pretensões e vida interior

A vida é uma corrente contínua e inalterável, talvez um pouco mais lenta nestes dias e encontrando mais resistência, porém ela continua a correr. Não posso igualmente dizer de mim própria como antigamente: «Sou tão infeliz, não sei mais o que fazer». Isto tornou-se-me completamente alheio. Antigamente, tinha realmente a pretensão de me considerar o ser mais infeliz do mundo.

(...)

E de súbito tornou-se-me tudo mais claro e eu disse: «Pois, estás a ver, no meu trabalho estou sempre nas regiões mais altas do espírito, e quando ouço coisas acerca destas situações dramáticas, interrogo-me, provavelmente sem consciência disso e aliás, agora muito conscientemente: será que eu conseguiria trabalhar do mesmo jeito, com a mesma convicção e dedicação, se permanecesse com oito pessoas esfomeadas no mesmo quarto imundo?» Porque este trabalho do espírito, esta intensa vida interior, na minha opinião só tem valor se puder ter continuidade sob qualquer circunstância externa; e se não puder ter continuidade na prática, pelo menos em pensamento. Senão, tudo aquilo que eu faço agora é somente «estetismo».

Etty Hillesum, Diário, 1941-1943

Irrelevante e inconsciente

Toda a mitologia é feita de gestos decisivos.
O gesto decisivo como sendo, tradicionalmente, um gesto heroico, como uma grande façanha.
É curioso, então, pensar num gesto decisivo que é, afinal, pouco relevante, ou melhor, que é, na aparência, pouco relevante.
Pouco relevante e não consciente da sua importância.
De facto, de uma maneira ou de outra, e com consequências ainda desconhecidas, o movimento do pescoço de Trump foi — para Trump e para a história dos Estados Unidos — um gesto decisivo. Porém, enquanto gesto em si — rotação do pescoço para o lado enquanto falava num discurso —, foi um gesto pouco relevante e não consciente da sua importância.
Irrelevante e inconsciente pode, então, ser o gesto decisivo. Que estranho, isto, num século onde o relevante e o consciente, a máquina e a decisão racional estão no centro da sociedade humana.

Gonçalo M. Tavares, «A rotação do pescoço, o destino», Expresso

Lynch minimal

 

No quarto, mais ao meio quase desaparecidos, dois braços bambos e uma máscara-lua-Méliès desfeita; na sala uma forma bela sugerida pela transparência e com luz ubíqua. No meio, quanto pó acumulado? Essa hipocrisia agarrada aos gestos como pó, mais do que isso, a vontade de comer o que ficará por saciar. A mulher, de algum modo, como uma santa bem enquadrada num altar com as mesmas poses reinventadas, criadora do sujo, pelo menos aos olhos do fantasma masculino. Caos, estupefacção, treva, humidade. A relação — no que tenha de mais violento — investida contemporaneamente de um horror ao informe.
Um salto agora. 
O sagrado é o mais sujo, um corpo que desaparece; é por isso que temos medo de Deus, confundimo-lo em demasia com a antítese do corpo. Deus é conceder ao corpo toda a sua alegria, mesmo que à custa de retratos em merda, ferida e fome (David Nebreda), privação incalculável, perversão da noção de autonomia, um abandono radical de todo o ruído, longe das formas socialmente atrozes da abjecção. O extremo abandono que comungam todos os condenados a agoniar sem perturbar. Ainda que no maior abandono já nada mais consiga alastrar senão a dor individual. A arte já não é arte, muito menos cultura, é instalação do terror íntimo, pânico, stress metafísico (dos quais, em Lynch, estão imbuídos alguns sonhos).
«Despenhar-se é atributo divino» (Silvina Rodrigues Lopes).

17.7.24

Baudelaire na natureza, na companhia dos abutres

Por engano,
a delicadeza não contou para nada. Aliás, a noite nunca se afastou. Condensou-se, negra e fria. Só paredes e o voo que se partia contra. Tanto faz, até o fogo na noite gritava uma expulsão definitiva. Agora, olho a sua estatura nas árvores deste parque, nas suas imensas raízes, no seu ser alheio e tremer ao menor sopro de vento. As folhas voltam-se para mim e para a altura mais alta. Tudo se desdobra, nada é meu e volta sempre sempre esse voltar-se. Desaparecer por instantes. Pouco se vê. Os abutres espreitam e empurram. Esconderam-se sob roupas de festa, a caminho do voto útil e da devoração. Chamam-se humanos, ameaçam a linguagem de despedimento. Quando queres esquecer eles rasgam-te as roupas, aproximam holofotes, ambulâncias. Não estás lá, voltas a amar as nuvens e a estender o teu desprezo soberano. Acompanho-te.

Silvina Rodrigues Lopes, Sobretudo as vozes

Amar as tempestades

A vida não é vida senão quando sei o que não sei. Sem nenhuma dúvida, os gestos recíprocos e verdadeiros estendem-se na superfície celeste, abraçam constelações, queimam-se no brilho de uma infância iminente.
Aqui perto, os edifícios que caem estão vazios. Os escombros acumulam-se. Sem ninguém, sem a terra vermelha e os frutos selvagens.
As crianças decepadas ganharam asas e as árvores estenderam raízes para o alto.
Não nos vemos, nem ouvimos. Cavamos trincheiras, sepulturas. Apontamos as armas que separam o inseparável. Flutuamos. Mortos vivos que nem sabem amar as tempestades.

Silvina Rodrigues Lopes, Sobretudo as vozes

16.7.24

Compreender o potro que morde o freio

Ouviu a ameaça do trovão e compreendeu o potro que morde o freio. Não abrandou o esforço para distinguir bem e mal, audácia e arrogância. Do lugar onde as vozes não eram audíveis retirava a energia dos números e das letras — a memória. Colocava-a no seu campo, o dos mortais, onde o desafio é um passo vital — encarar a morte sem terror. E das espadas surgiam asas, anunciações indeterminadas, a esperança. Um encolher de ombros e um sorriso, porque tudo podia ser de outra maneira.

Silvina Rodrigues Lopes, Sobretudo as vozes

15.7.24

Subjetivo e objetivo

Não vale alarmar-se. – Assaz difícil é decidir o que seja objectivamente a verdade, mas, no trato com os homens, não há que se deixar aterrorizar por isso. Existem critérios que para o primeiro são suficientes. Um dos mais seguros consiste em objectar a alguém que uma asserção sua é «demasiado subjectiva». Se se utilizar, e com aquela indignação em que ressoa a furiosa harmonia de todas as pessoas sensatas, então há motivo para se ficar alguns instantes em paz consigo. Os conceitos do subjectivo e objectivo inverteram-se por completo. Diz-se objectiva a parte incontroversa do fenómeno, a sua efígie inquestionavelmente aceite, a fachada composta de dados classificados, portanto, o subjectivo; e denomina-se subjectivo o que tal desmorona, acede à experiência específica da coisa, se livra das opiniões convencionais e instaura a relação com o objecto em substituição da decisão maioritária daqueles que nem sequer chegam a intuí-lo, e menos ainda a pensá-lo — logo, o objectivo. A futilidade da objecção formal da relatividade subjectiva patenteia-se no seu próprio terreno, o dos juízos estéticos. Quem alguma vez, pela força da sua precisa reacção em face da seriedade da disciplina de uma obra artística, se submete à sua lei formal imanente, à coerção da sua composição, vê desvanecer-se-lhe a prevenção do meramente subjectivo da sua experiência como uma mísera ilusão, e cada passo que dá, graças à sua inervação extremamente subjectiva, para se adentrar na obra, tem uma força objectiva incomparavelmente muito maior que as grandes e consagradas conceptualizações acerca, por exemplo, do «estilo», cuja pretensão científica se impõe à custa de tal experiência. Isto é duplamente verdadeiro na era do positivismo e da indústria cultural, cuja objectividade é calculada pelos sujeitos que a organizam. Perante esta, a razão refugiou-se toda, e sem janelas, nas idiossincrasias, acusadas de arbitrariedade pela arbitrariedade dos poderosos, porque eles querem a impotência dos sujeitos, em virtude da angústia frente à objectividade que só em tais sujeitos se encontra preservada.

Theodor Adorno, Minima moralia, trad. Artur Morão

Proibido desde já todo o pensamento

Serviço de urgências

Membros contra membros chocam
para se intersectar na cabeça.
Na mesa de dissecação contudo entreolham-se
o estereoscópio e a caneta
para que, do seu fortuito encontro,
jorre toda a beleza —
violenta e sempre pronta
pelos celibatários a ser violada
e desde logo servida sobre a marquesa.
Mas o que importa é o calor dos corpos
quando a mão aperta a memória
e se torna indistinguível
a matéria de uma e de outra —
ou quando, da tracção dos músculos,
de súbito derrama o pensamento.
Indiferente ao sofrimento
o homem adquire o hábito 
de com a mão sopesar
a febre dos outros:
ah! como explodem os corpos
num cenário apocalíptico em technicolor
(sintetizado em tons de ouro e negro)
em que o Silver Surfer e o Ghost Rider
procuram dilatar o destino
o tempo de um segredo.
Não há nada, no entanto, que nos olhos nos atinja
já que tudo se passa entre as mãos
ou no interior da cabeça.
Compreende-se assim os enfermeiros, distraídos —
habituados que estão a confrontar
a estranheza do corpo
com a sua indómita indiferença.
Levantam-se da mesa
e o mundo parece reduzir-se
a uma ligadura branca
que nos cai das mãos
sem que o sentido da vida 
se esclareça.
De olhos fechados, revela-se um interior:
uma massa branca de que se encontra excluída
qualquer forma de incerteza
(nas paredes, uma prescrição única:
proíbido desde já todo o pensamento).

Fernando Guerreiro, Poemas instantâneos

«Cerrar los ojos» de Victor Erice

Uma sombra, cada um que somos
atarantados sem entender o papel que nos tocou 
pôr em gestos e palavras
Mecanicamente o vamos vivendo mesmo 
que nem tudo funcione como novo
Como nada funciona como novo a partir do 
nascimento
Da atmosfera para os nossos pulmões adormecidos
Embriagados da impossibilidade de o esquecer
e continuarmos vivos de desaparecimento apenas sonhado
E nessa deslocação que é uma distância 
sentida – 
só pelos outros reconhecida, mas
Os outros sê-lo-ão para sempre, outros-outros –
Afinal, essa distância em relação 
a um conjunto de crenças e expectativas
Sobre nós, termos sido excluídos da crença
posta sobre o nosso nome 
Essa distância é em vida
Suportável, é possível continuar a viver 
sem biografia
Mas não sem a vida, sem o mar, sem a música, sem as mãos: 
e que perverso! – um outro juízo sobre
a contingência orgânica agora –
Que uma ordem continue a ser uma ordem 
para um conjunto desavindo de estradas neuronais
que a cabeçorra hesite impotente diante do óbvio
E que mesmo assim as mãos tremam 
o pescoço se incline como mosca ainda conhecedora
dos males da electricidade ou de mão irritada
Para o mais dentro desse mundo interior de que desviamos sempre o olhar
Para quê? Não nunca realmente esquecido!
Que um homem sem nome
como todos os homens que nunca o escolheram
– um grande não perplexo socialmente –
Seja ainda solícito com um sim, sim descalço
Perto de uma árvore ainda robusta e perene apesar da distância
Em relação à sua origem
Saber como quem se lança em verso pelas falsas costuras de si
Como afinal são os caminhos das mãos iguais com maior ou menor 
Controlo, porque o teu fazer foi sempre inconsciente? 
Outra vida, pescar, apenas ver?
Tragam-me esquecimento em travessas!
Não me lembro de nada, pára-se-me de repente o pensamento
Reconheço o amigo pelas mãos que fizeram comigo coisas em conjunto
Dois amigos: sim além disso foram a sítios
E a arte, no limite, salva uma pessoa
De quê? Para o quê?
O cinema olha para ti, o teu futuro 
nas tuas costas a olhar
na direcção oposta à do teu horizonte actual
Não há encontro, fecha os olhos
à possibilidade de dizer o teu nome
Nó que não desata nova linha para se entrelaçar: 
Tubo (cor), o coração
Nó cego, quebrado, pois, demasiado marítimo:
alma ainda agora nascida para as afecções de sempre
Ou um moribundo com coração, pulmões ainda 
cérebro com as suas funcionalidades embora:
E ouvidos

12.7.24

Lido quase ao mesmo tempo

«As pessoas renderam-se desmedidamente às suas aflições, até se destruírem» (Etty Hillesum, Diário)

«Não se dedicam a antecipações
já que o tempo, para eles, reside num futuro
nunca suficientemente inaugurado (claro)» 

Fernando Guerreiro, Poemas instantâneos

Moderno é ser devorado pela contingência, a contingência tornada necessária e extremadamente pessoal. Entregue às suas aflições ao microscópio, ao golpe culpado de ser verdugo em causa própria.

A contingência de um futuro nunca suficientemente inaugurado — calcular o quê se o tempo já acabou? Nenhum passado pode viver ainda se nos venderam um futuro falsificado. Diria que o 'suficientemente' assinala o atraso de si com o seu próprio viver: uma desconfiança, uma incoincidência, ceder o passo ao cadafalso. E o 'claro' é a suspeita de uma distância – para tais efeitos, alegria – nunca totalmente elidida.

A incapacidade de antecipar é a imaginação bloqueada, render-se ao cárcere dos factos, ao ver mais estrito, funcional talvez (embora a sobrevivência assente na antecipação). Na «gelatina do desencanto» (uma fotografia de Diane Arbus), o mínimo gesto é um cálculo infinito que ultrapassa as condições de não sermos mais os réus do triunfo de algum porco.

10.7.24

Gatos, letrados ariscos

Os letrados, porque essa palavra designa os homens que decompõem todas as coisas letra a letra e todas as relações fragmento por fragmento, são os homens que rompem o caminho.
Cisalham todos os fios. Escalam as velhas muralhas do parque onde estão fechados, por mais que se tente retê-los aí. Içam-se sobre os muros da caserna. Reasselvajam-se. São como os gatos, que preferem as sarjetas aos salões, errantes, medrosos, subtis, recuando ao menor ruído, desconcertados pela menor dor, saltando ao menor movimento de um fio de aranha que se mexe, de uma nuvem que passa, de uma abelha que esvoaça, de uma folha que cai, negligenciando as vias-férreas, os aeroportos, as auto-estradas com portagens, passando pelas ardósias lisas e inclinadas dos telhados, pelas valas lamacentas dos campos, pelas margens húmidas e brumosas dos rios.

Pascal Quignard, Os desarçonados, trad. Diogo Paiva

9.7.24

Cão, amigo, Chelsea Hotel

Salute, to the Brave New World

Por vezes temos de morrer
e um cão, então, serve-nos suficientemente de desculpa.
Mas a culpa não é verdadeiramente do cão.
O tipo até é simpático — aceita que o levemos à rua
e, com displicência, reconhece inclusive
a nossa companhia.
A coisa revela-se, por vezes, noutras noites.
Por exemplo, quando olhamos de frente
a falta de expressão, de verdadeiro interesse,
dos nossos amigos. Reparem que não digo
que a culpa seja nossa ou deles —
só que o tempo passou há muito
e não existe nada que verdadeiramente
venha ocupar a falta de um sentido
que por dentro nos desocupa
e a que, à falta de melhor,
o nome damos de súbita ausentação do destino.
Um cão já se teria ausentado há muito —
e com boas razões: para mijar,
sublinho, entre amigos.
Mas a questão não é verdadeiramente a da noite —
é a da música que, excessiva,
nos evoca um ponto
somewhere out or inside this world
em que, se a vida ainda não é possível,
pelo menos o contacto seria a subtil lei do contorno
dos nossos gestos com os seus requícios.
Tudo é muito mais belo do que isto —
e por isso mesmo imperdoável(irreconhecível).
Edie Sedgwick atravessou o hall do Chelsea Hotel
e nua correu para o parque(frio),
apenas com um manto de peles
e sem precisar do conforto dos sorrisos.
É preciso ter(e perder) muito
para assim se agarrar à pele,
beber vodkas como quem incendeia o destino
e para trás deitar cápsulas e cálices de noite e de angústia.
Será publicável este segredo?
E restituível a poesia?
Que querem que vos diga?!
No outro dia um estranho cruzou o meu segredo
e o seu silêncio foi o seu melhor desperdício.
Ouve-se de menos música —
e já não falo, sequer, do ruído.
Uma mulher fez de fera a sua pele
e já não precisa de a tirar
quando tem de sair
para ir a qualquer sítio.
Não, não é que esteja tudo errado,
somos nós que voltamos sempre ao mesmo,
antecipando-nos na ignorância 
de qualquer princípio.
What Smokey sings?,
nem sequer isso —
mas quando a poesia
é o nome mais curto que damos
a um breve passeio entre o silêncio
e o abismo.
O que vos queria dizer
quando comecei este poema (?)
e a noite já se torna
a parte mais curta do dia?!
Talvez a rapariga que sai do carro
saiba muito mais do que há para saber
(viver?) sobre tudo isto.
Mistérios da pele, coisas pequenas —
quando das páginas da Vogue
de súbito explode(implode?)
o (im)possível.

Fernando Guerreiro, Poemas instantâneos



7.7.24

A cura

«A cura só obedece a uma fórmula: Abandona tudo e salta!»

William Burroughs, Festim nu

6.7.24

Anarquia e adeus

«O homem põe e dispõe. Só a ele cabe pertencer-se todo inteiro, isto é, manter em estado de anarquia o âmbito cada vez mais temível dos seus desejos. A poesia ensina-lho: traz com ela a compensação perfeita das misérias que sofremos. É também uma ordenadora, se sob o efeito de uma decepção menos íntima nos lembramos de levá-la ao trágico. Venha o tempo em que ela decrete o fim do dinheiro e só ela parta o pão do céu para a terra! Haverá ainda assembleias nas praças públicas, e movimentos em que inesperadamente tomarás parte. Adeus selecções absurdas, sonhos de abismo, rivalidades, paciências exaustivas, galope das estações, ordem artificial das ideias, rampa do perigo, tempo para tudo! Dêem-se ao menos ao trabalho de pôr a poesia em prática. A nós, que vivemos dela, cabe-nos fazer prevalecer o seu mais amplo relato.»

André Breton, 1.º Manifesto do Surrealismo

2.7.24

Um corpo

«Um corpo só existe para ser outros corpos»

William Burroughs, A revolução electrónica

29.6.24

Grande luxo

HERÁLDICA

Grande luxo é ser pobre por escolha,
tentação de ser Deus que nada tem,
orgulho incomensurável. 
Por causa disso sou advertida
de que muitos me precederão no Reino,
os ladrões, os maus poetas
e pior, os bajuladores que os louvam.
Sofro pelo pensamento
de que no palácio devem ficar os reis
e na fábrica os operários, nos armazéns de cereais.
Que dura sentença espera
aos que, como eu,
ofusca uma lucidez tão grande!
Sei quando um verso é mau,
quando não vem desgarrado
da margem ignota da alma.
O que me possui é orgulho,
ou alegria — que não reconheço —
travestida de andrajos?
Só posso dizer que é amor
esta fadiga de catar as pérolas,
descobrir nos brasões a milenar linhagem.
Ninguém sabe o que diz quando fala dos pobres.

Adélia Prado, Tudo que existe louvará


E passa

PEQUENOS PEDINTES

Nas esquinas
pelas portas dos cafés
pedintes ainda meninos
estendem a mão a quem passa
e quem passa dá esmola
ou não
e passa...
Ninguém escuta já a história
gasta e estafada
verdadeira ou falsa,
que murmuram seus lábios fanados
como pétalas murchando;
ninguém responde ao apelo
desta mão suplicante
que se estende, tímida e humilde,
e se pendura nas abas dos casacos:

— Quem passa dá esmola
ou não
e passa...

Pequeninas mãos brancas de pedir,
mais brancas ainda de anemia,
que destino se lê nas suas linhas?...

— PROSTITUTAS? LADRÕES? ASSASSINOS?

Olhos cristalinos de inocência
sorrisos brancos das bocas,
mãos de brinquedo,
foi a vida que lhos roubou...
e deixou
olhos fundos naufragados
entre traços de desgraça
que a vida cavou,
bocas mortas como noites sem estrelas,
gestos cansados de quem se fartou...

Tristes mãos de pedir o pão,
que mau destino se lê nas suas linhas?

— PROSTITUTAS! LADRÕES! ASSASSINOS!

Ai, pobres mendigos,
pálidos meninos,
sangue da minha raça!

Joaquim Namorado, Aviso à navegação (1941)
no Surreal/Abjeccionismo

28.6.24

Levantar a cabeça devagar, a leitura, a perplexidade, a patologia

O capitão, um cavalheiro e uma jovem rapariga: os três sobem para a cesta, as cordas de fixação são desamarradas e a estranha casa levanta voo lentamente nas alturas, como se ainda estivesse a pensar em alguma coisa.

Robert Walser, Cinza, agulha, lápis e fosforozitos, «Viagem de balão»

De vez em quando

De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.

Adélia Prado, «Paixão», Tudo que existe louvará

O amor hoje está tão pobre

ÓRFÃ NA JANELA

Estou com saudade de Deus,
uma saudade tão funda que me seca.
Estou como palha e nada me conforta.
O amor hoje está tão pobre, tem gripe,
meu hálito não está para salões.
Fico em casa esperando Deus,
cavacando a unha, fungando meu nariz choroso,
querendo um pôster dele no meu quarto,
gostando igual antigamente
da palavra crepúsculo.
Que o mundo é desterro eu toda vida soube.
Quando o sol vai-se embora é pra casa de Deus que vai,
pra casa onde está meu pai.

Adélia Prado, «Orfã na janela», Tudo que existe louvará

24.6.24

Amores sem contrapartida

Izumi Shikibu: O que é estranho neste mundo
é que não tenham fim
os amores sem contrapartida. 

(Quignard)

23.6.24

Um bom horóscopo é fundamental

Pelo dedo atento do João Almeida, amigo e vates-príncipe do Vale do Ave — ouço José Pinhal, um vago e distinto Dire Straits à discoteca na hora em que o dia já mais que visível era, aconselhado num Delfos urbano de escada esconsa e fancaria redundante a compor outros versos, porém não fizésseis, Amor, da poesia e do próprio destino pormenores quase irrisórios. O prazer é quanto posso, quanto mais vos pago, mais vos devo, Senhor, Circe de céus errados: Fui perguntar à bola de cristal Porque é que a vida me corria mal E o meu destino parou E o adivinho aconselhou A compor outra poesia Mas na falta de inspiração Fiquei preso na tua magia