8.12.25

Dobra implosiva

Quero eu dizer que os seus vapores — a sua presença, o seu modo de presença — vêm mais ao de cimo e que então essa «coisa» não sou «eu» mas a minha «aura» negativa, de que eu constituo o «corpo morto», o suporte compósito, anfíbio. Lembro-me de Lovecraft. Dos monstros do ciclo de Dunwich. Mas não me quero sequer explicar... Lembro-me de que há alguns anos vi um filme com Vincent Price, extraído de um conto de Maupassant: o Horla. Mas também não é isso. Fui fã dos filmes da série-Poe, do Corman, mas também não é bem isso. Aproxima-se mais do Scanners, de Cronenberg, mas, tal como em Aliens, de Riddley Scott (ou The Thing, de Carpenter), é preciso compreender que a «coisa» está lá dentro, mas morta, sem nunca ter explodido. Como se recusasse manifestar-se, ser tão evidentemente monstruosa. Um monstro que dissesse: desisto. Prefiro ser esta «coisa» interior que cada um — neste caso «eu» (?) — traz consigo (ou será «ele» que me traz consigo?). Um «monstro», assim, morto. Consigo e comigo próprio cozido. Um processo, portanto, de reclusão interior: um volvo íntimo, implosivo. Não há histórias que tratem suficientemente disto (talvez o que eu aqui escreva não passe, afinal, do argumento para uma série-B ou para um filme medíocre?!...). Sobretudo, não se trata de uma história de «duplos». Não sou nenhum estudante de Praga. William Wilson não é meu amigo. Não se trata disso. Trata-se, isso sim, da própria impossibilidade do «duplo». Uma espécie de dobra de si, mas ao mesmo tempo ausente, nociva (negativa).

Fernando Guerreiro, A sagrada família

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