Querido pai,
alguma vez se deparou com a morte? Posso dizer que a vi desde o primeiro dia em que nasci. Não à maneira dos poetas barrocos espanhóis que o pai me leu ou dos memento mori da pintura. Nesses casos, a morte era ainda uma coisa que se anunciava. A vida era a espera e a esperança dessa vinda aguardada e reconhecida. Santa Teresa, aliás, não pensou outra coisa, só que deu o nome de desejo (por vezes «ardente») a essa «espera», vivida como clímax. Percebeu que a única maneira de ultrapassar a morte consistia em antecipá-la, desejando-a e construindo-a ainda em vida. Mishima também fez isso. No famoso dia 25 de novembro de 1970. Fê-lo como uma coisa ou uma forma apetecida. Ficcionalizou a «morte», construiu-a como um dos capítulos ainda da vida. Escreve-se, não é?, para antecipar a morte. A pequena morte. Para a usar em doses pequenas como uma anfetamina — ou morfina. Não falo propositadamente em heroína. Aí, trata-se da espiral alucinatória da morte, ignorando-se, iludida, mas ainda acreditando constituir uma forma entusiástica (nalguns casos orgástica), ou desértica, de vida. Sei que na tua farmácia tens muitas lâminas pequenas e algumas drogas duras. Mas a morte, tal como a queremos, é sempre uma morte pequena. E quando vem, só então é como the last shot, uma droga dura. Em pequena, espetavas-me com as tuas seringas. Dizias-me: «aí tens os teus castelos de espuma — o bosque onde o touro te pode vir surpreender e ferir sonho dentro, como a uma bela adormecida». Eram estes os teus contos de embalar. Entrecortados com veias mortas, facas d'ónix e seringas, lâminas curtas. Os cutelos, manejo-os desde pequena. Foi essa, mesmo, a primeira iniciação que me deste — e onde deve ser, na cozinha. Entre frangos e coisas pequenas: rodelas de fiambre e flores de farinha... O sangue jorrava das pernas e era um caldo morno onde todos, depois — a nossa mãe ausente —, nos banhámos e lavámos as feridas. Foram umas férias — e uma infância — sangrentas. Mas habituou-nos à vida. A reconhecer o sangue onde as pessoas, com as roupas, com todo o cuidado o escondem e dele se defendem. Disseste-nos: as pessoas, se se vestem, as roupas usam-nas como ligaduras: para estancar o sangue ou cauterizar as feridas. De outro modo, não andariam nuas, não é bem isso, mas comportar-se-iam como se o seu estado natural fosse o da transparência. Usariam apenas as roupas que as dessem melhor a ver: translúcidas. Assim não, desculpam-se com o inverno ou a chuva... Por vezes, contudo, há recaídas (como grandes fendas, grandes aberturas no tempo) e então as pessoas cruzam-se como pessoas de novo nuas, feridas. Sobretudo as raparigas. Lembro-me como foi para ti épica essa época dos finais dos anos setenta. Needles and pins. Ou seja, as pessoas finalmente vestiam-se como alfinetes. Como coisas ácidas, duras drogas felinas. A mini-saia voltou a ser, durante algum tempo, um rasgão, um clarão que incendiava o ar e o espaço. Uma ranhura (rasura) no bom-gosto. As meias violácias ardiam no ar, faziam andar o espaço e, quando elas passavam, era como grandes bandos de estorninhos, de súbito mudos; que sobre tudo pousavam e caíam, feridos. Marcel Lecomte comparava-nos às Amazonas — e a tua vontade era que eu fosse a primeira delas, aquela sobre quem Kleist escreveu, Pentesileia, a opositora de Aquiles. Por isso nascemos no dia em que, para os outros, morremos. Não somos zombies dos outros mas vampiros de nós mesmos.
Fernando Guerreiro, A sagrada família

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