A causa palestiniana é antes de mais a das injustiças que esse povo sofreu e continua a sofrer. Essas injustiças são actos de violência, mas também ilogismos, falsos raciocínios, falsas garantias que dizem compensá-las ou justificá-las.
(...) De uma ponta à outra, trata-se de actuar como se o povo palestiniano não só não devesse existir, mas como se nunca tivesse existido.
Os conquistadores estavam entre aqueles que sofreram o maior genocídio da história. Os sionistas fizeram desse genocídio um mal absoluto. Mas transformar o maior genocídio da história num mal absoluto é uma visão religiosa e mística, não uma visão histórica. Ela não pára o mal; pelo contrário, propaga-o, faz com que ela incida sobre outros inocentes, exige uma reparação que faz os outros sofrerem um pouco daquilo que os judeus sofreram (expulsão, guetos, desaparecimento como povo). Com meios mais "frios" que o genocídio, pretende-se alcançar o mesmo resultado.
Os EUA e a Europa deviam aos judeus uma reparação. E fizeram com que essa reparação fosse paga por um povo que não tinha nada a ver com ela, singularmente inocente de qualquer holocausto e que nem sequer tinha ouvido falar dele. Aqui começa o grotesco, assim como a violência. O sionismo, e depois o estado de Israel, exigiram reconhecimento jurídico aos palestinianos. Mas ele, o Estado de Israel, nunca parou de negar a existência de um povo palestiniano. Nunca se fala de palestinianos, mas de árabes da Palestina, como se estivessem lá por acaso ou por engano. Depois finge-se que os palestinianos expulsos vinham de outro lugar, nunca se mencionará a primeira guerra de resistência que lutaram completamente sós. Faz-se deles descendentes de Hitler, já que não reconhecem a Israel o seu direito. Mas Israel reserva-se o direito de negar a existência deles. É aqui que começa uma ficção que a cada vez se difundirá mais e que pesará sobre todos aqueles que defendiam a causa palestiniana. Esta ficção, a aposta de Israel, era fazer com que qualquer um que desafiasse os factos e as acções do Estado sionista parecesse anti-semita. A fonte desta operação foi a fria política de Israel para com os palestinianos.
Desde o início, Israel nunca escondeu o seu objectivo: esvaziar o território palestiniano. Melhor ainda, actuar como se o território palestiniano estivesse vazio, destinado sempre aos sionistas. Era uma colonização, mas não no sentido europeu do século XIX: não se pretendia explorar os nativos, mas expulsá-los. Aqueles que resistissem a sair não se converteriam em mão-de-obra dependente do território, mas sim mão-de-obra errante e desenraizada, como se fossem imigrantes colocados no gueto. Tratava-se desde o princípio de ocupar terras como se estivessem desertas ou se pudessem esvaziar. É um genocídio, mas o extermínio físico está subordinado neste caso à evacuação geográfica: sendo árabes em geral, os palestinianos sobreviventes devem fundir-se com o resto dos árabes. O extermínio físico, confiado ou não a mercenários, não deixa de estar presente. Mas não é genocídio, dizem, já que não é a "solução final": de facto, é um meio entre outros. A cumplicidade dos Estados Unidos com Israel não procede unicamente do poder de um lobby sionista. Elias Sanbar mostrou perfeitamente como os Estados Unidos encontraram em Israel um aspecto da sua história: o extermínio dos índios que, também neste caso, só em parte foi directamente físico. Tratava-se de esvaziar, de actuar como se nunca tivessem existido índios a não ser em guetos, o que faria deles outros tantos imigrantes por lá. De muitas maneiras os palestinianos são os novos índios, os índios de Israel. A análise marxista identifica estes dois movimentos complementares do capitalismo: impor constantemente limites, dentro dos quais constrói e opera o seu próprio sistema; deslocar para cada vez mais longe esses limites, ultrapassá-los para voltar a empreender, a maior escala ou maior intensidade, a sua própria fundação. Deslocar os limites foi a acção do capitalismo americano, do sonho americano, que foi recuperado por Israel e pelo sonho da Grande Israel em território árabe e à custa dos árabes. (...)
Gilles Deleuze, «A grandeza de Yasser Arafat» (1983), Dois regimes de loucos
O termo 'índio' mantém-se para dar conta da prepotência e da ignorância dos colonizadores que assim designaram os povos nativos americanos. Desde que se difundiu mediaticamente o termo 'terrorista', especialmente após o 11 de setembro, pôde o Estado cumprir sem mais disfarces o papel de mercenário, sem tanta necessidade de células paramilitares (que persistem na Cisjordânia). Encontra-se hoje no alastrar da extrema-direita o contexto adequado para a normalização do genocídio e da limpeza étnica e, além disso, para a sua denegação.
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