Quando a grande luta se ergueu no horizonte de decadência, Theodoro Letzinski acabava brilhantes estudos de medicina.
Era um desses homens de que se diz: «Há-de ir longe» — O seu perfil eslavo e a sua palavra não menos impregnada de encanto eram bem conhecidos nos meios livres-pensadores.
Theodoro Letzinski, como todos os estudantes russos, era anarquista, e os seus olhos, abertos em amêndoa, muito meigos, dardejavam raios quando se falava das propriedades que o seu pai tinha nas margens do Brachylum.
A mobilização, fonte de desassossegos, surpreendeu-o em pleno sonho. Ferido nos seus mais queridos ideais de «humanidade», foi mobilizado como enfermeiro — vagamente emocionado por ver-se dentro de um uniforme detestado e que assumia a grandeza dos acontecimentos.
Depois, ganho a custo para a causa civilizadora que, mau grado seu, o tomava como prosélito, Theodoro Letzinski partiu para a linha de fogo num dia em que fazia calor e ele relia Kropotkine, Marx e P. de Malpighi.
Então, operou-se a santa conversão: o sangue dos maiores aqueceu nele e o antigo guerreiro que brandira o chicote de oito pontas despertou. Esteve quase a matar inúmeros boches e foi visto no dédalo das trincheiras com um olhar estranho e batendo no próprio peito.
Houve um ataque: à frente de todos, apesar da sua braçadeira de paz e sem ouvir as balas que mordiam o seu corpo ascético, só parou na terceira linha alemã, completamente só. Depois, tombou. Como é hábito, um oficial alemão ordenou que lhe cortassem as mãos. Depois, com um sorriso:
«Tragam-me os comunicados — disse o oficial — e leu ao agonizante os sucessos imperiais: Verdun, tomada... Varsóvia e o Malpighi em chamas, descerebragem do Senhor Poincaré...»
De olho fixo e eslavo, Theodoro Letzinski ouvia. O seu sangue corria suavemente e começava a molhar os joelhos dos que o rodeavam. Alguns alemães mergulharam nele os cantis e beberam. Theodoro Letzinski parecia não ver nem sentir. Com a ajuda dos dentes e dos horríveis cotos, empenhava-se num estranho trabalho.
O oficial prussiano continuava a horrível leitura: «Igrejas, todas entregues pelo Senhor Barrès, o segredo da poesia abandonado por A... B...»
Theodoro, exangue, já não podia falar, mas o seu trabalho estava terminado. Sobre o horrível caldo púrpura que subia sempre — mar aterrador — abandonou um símbolo.
Um pequeno barco de papel flutuava.
Jacques Vaché, in Mário Cesariny, Textos de afirmação e de combate do movimento surrealista mundial
Dois desenhos de Jacques Vaché: Ces messieurs, Toth.
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