9.7.24

Cão, amigo, Chelsea Hotel

Salute, to the Brave New World

Por vezes temos de morrer
e um cão, então, serve-nos suficientemente de desculpa.
Mas a culpa não é verdadeiramente do cão.
O tipo até é simpático — aceita que o levemos à rua
e, com displicência, reconhece inclusive
a nossa companhia.
A coisa revela-se, por vezes, noutras noites.
Por exemplo, quando olhamos de frente
a falta de expressão, de verdadeiro interesse,
dos nossos amigos. Reparem que não digo
que a culpa seja nossa ou deles —
só que o tempo passou há muito
e não existe nada que verdadeiramente
venha ocupar a falta de um sentido
que por dentro nos desocupa
e a que, à falta de melhor,
o nome damos de súbita ausentação do destino.
Um cão já se teria ausentado há muito —
e com boas razões: para mijar,
sublinho, entre amigos.
Mas a questão não é verdadeiramente a da noite —
é a da música que, excessiva,
nos evoca um ponto
somewhere out or inside this world
em que, se a vida ainda não é possível,
pelo menos o contacto seria a subtil lei do contorno
dos nossos gestos com os seus requícios.
Tudo é muito mais belo do que isto —
e por isso mesmo imperdoável(irreconhecível).
Edie Sedgwick atravessou o hall do Chelsea Hotel
e nua correu para o parque(frio),
apenas com um manto de peles
e sem precisar do conforto dos sorrisos.
É preciso ter(e perder) muito
para assim se agarrar à pele,
beber vodkas como quem incendeia o destino
e para trás deitar cápsulas e cálices de noite e de angústia.
Será publicável este segredo?
E restituível a poesia?
Que querem que vos diga?!
No outro dia um estranho cruzou o meu segredo
e o seu silêncio foi o seu melhor desperdício.
Ouve-se de menos música —
e já não falo, sequer, do ruído.
Uma mulher fez de fera a sua pele
e já não precisa de a tirar
quando tem de sair
para ir a qualquer sítio.
Não, não é que esteja tudo errado,
somos nós que voltamos sempre ao mesmo,
antecipando-nos na ignorância 
de qualquer princípio.
What Smokey sings?,
nem sequer isso —
mas quando a poesia
é o nome mais curto que damos
a um breve passeio entre o silêncio
e o abismo.
O que vos queria dizer
quando comecei este poema (?)
e a noite já se torna
a parte mais curta do dia?!
Talvez a rapariga que sai do carro
saiba muito mais do que há para saber
(viver?) sobre tudo isto.
Mistérios da pele, coisas pequenas —
quando das páginas da Vogue
de súbito explode(implode?)
o (im)possível.

Fernando Guerreiro, Poemas instantâneos



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