27.7.24

Adenda a propósito de sombras

No número 10 da Electra, encontra-se uma fotografia de Herb Ritts, Jackie Joyner-Kersee, Point Dume, 1987. Um corpo atlético de mulher salta, no que parece salto em comprimento, triplo salto; câmara de ângulo lateral, plano ligeiramente picado, porque interessará menos a pessoa (cujo rosto está fora de enquadramento) e mais a sua sombra. O corpo tenso e forte, funcional, o salto menos arcaico e espontâneo, mas segundo regras e técnicas que o elevam. Mas a sombra, quanta graça! Um corpo mais alto e aéreo deitado na terra do que aquele mais acima sobre o ar! Dar mais atenção à nossa sombra.
 

E todavia, assinala o poeta colombiano Luis Vidales: «Vinte anos tive e outra sombra tive». Também a sombra ganha peso, perde graça, quando o medo de cair se impõe à vontade de saltar. 
Ou seria essa sombra mais pesada então?
Em certos dias, é como se a sombra fosse o par, o duplo, apenas para dar a garantia de que o céu ainda existe e sabe escrever. Para imaginar, destruir a realidade, é preciso a graça das sombras, que os dias dancem na dobra dos dias, que se lance ainda mão daquilo que não tem preço, de estar à altura duma irresponsabilidade, contradizendo uma observação de Adorno, para quem não era muito irrealista estar alegre (pese embora a gaia ciência inquieta que também cultivou). O pesadelo seria, pois, que mesmo as sombras não dancem, mesmo elas se mantenham em linha com um corpo obediente, reprimido, rígido, a ter que medir o que possui com os outros, com todos os que pesam ouro e procuram o melhor terreno, aquele companheirismo útil, urbano de palmadas e sorrisos torpes, cínicos ou alarves, com uma linguagem tão clara que ofusca, os gestos já tão científicos, a acusação que recai sobre todos os marginais, os caídos, os desesperados, a resposta tão existencialmente hesitante, tão mundanamente convicta, ao nosso pânico atmosférico. Sombras já tão mecanizadas como o corpo, que não tremem, que assustam não por serem um outro corpo desconhecido, mas porque já se tornou previsível: «O que não quero é a realidade, sombras coladas ao chão, sem o mínimo estremecimento» (Silvina Rodrigues Lopes, Sobretudo as vozes).

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