Andreia C. Faria, Canto do aumento, desenhos Rita Roque
23.1.24
Síntese de uma geração ao lado da realidade, sem canto de aumento
Estamos na margem ilusória da abundância, ao lado da realidade em que a promessa geral de crise basta para nos tolher. Estamos do lado errado do desejo, consumindo com emoção apocalíptica, mas consagrando o gosto ao minimal para que a alma tenha ainda por onde se salvar. Nada nos aparenta a esses velhos mendigos que perturbavam um pouco a nossa infância, esses que faziam amizade com os pombos e nunca entravam nas confeitarias. E no entanto são o único povo que ainda nos comove. Mesmo se não passamos necessidade, se temos casa, um trabalho, alguém connosco, começamos a saber que em breve o mundo será um lugar pobre, árido, descarnado, e também nós começamos a sê-lo, também nós estimamos a dificuldade do que aí vem. Sim, estamos cercados pela necromancia da finança, a obscura passagem do dinheiro entre esclavagistas mortos e artistas vivos, estamos excluídos da boa casta e cripta bafienta das heranças, temos de trabalhar sem outro propósito além de pagar as contas e essa exigência torna amorfa a nossa raiva — ninguém tem a clareza necessária ao uso da raiva ao fim de oito absurdas horas mais o tempo da viagem. Afeiçoamo-nos ao ritmo da catástrofe, à distensão no intervalo das notícias, à ciclotimia que é a verdadeira marca da ausência das paixões.
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Rita Roque,
século XXI
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