23.1.24

Síntese de uma geração ao lado da realidade, sem canto de aumento

Estamos na margem ilusória da abundância, ao lado da realidade em que a promessa geral de crise basta para nos tolher. Estamos do lado errado do desejo, consumindo com emoção apocalíptica, mas consagrando o gosto ao minimal para que a alma tenha ainda por onde se salvar. Nada nos aparenta a esses velhos mendigos que perturbavam um pouco a nossa infância, esses que faziam amizade com os pombos e nunca entravam nas confeitarias. E no entanto são o único povo que ainda nos comove. Mesmo se não passamos necessidade, se temos casa, um trabalho, alguém connosco, começamos a saber que em breve o mundo será um lugar pobre, árido, descarnado, e também nós começamos a sê-lo, também nós estimamos a dificuldade do que aí vem. Sim, estamos cercados pela necromancia da finança, a obscura passagem do dinheiro entre esclavagistas mortos e artistas vivos, estamos excluídos da boa casta e cripta bafienta das heranças, temos de trabalhar sem outro propósito além de pagar as contas e essa exigência torna amorfa a nossa raiva — ninguém tem a clareza necessária ao uso da raiva ao fim de oito absurdas horas mais o tempo da viagem. Afeiçoamo-nos ao ritmo da catástrofe, à distensão no intervalo das notícias, à ciclotimia que é a verdadeira marca da ausência das paixões.

Andreia C. Faria, Canto do aumento, desenhos Rita Roque

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