Um testemunho lúcido, comovente, violento.
O oposto do que acontece com frequência: fala-se dos interesses, os assuntos entre nós, com a gravidade do momento. Com o tom trágico que convém à prossecução dos seus próprios interesses. A gravidade verbal que projeta os problemas para a via láctea, não para a escuta efetiva; não a exposição à incerteza, não a espera de perceber aquilo em que se pensa, mas o mínimo que sucumbe, logo conclui, arrematado por alguma piada para efeitos democráticos. Dispostos num ar tão rarefeito, numa tão transcendente humanidade verbal, que se torna tudo indiscutível. O pânico de expressar uma opinião como se qualquer dúvida fosse o epitáfio de uma inteligência sem nenhuma confiança em si mesma.
Nunes da Rocha fala da educação a partir dos seus próprios pés indecisos, de uma sensibilidade que não suportaria não estribar o mundo na delicadeza. A realidade é o fim de um «magnetismo inato», dita que ao amor apenas de rastos podemos chegar; água em curto-circuito, «protagonismo do normal», o medo como a autoestrada definitiva. O abjeto em forma de linha reta, o consolo de tantos mortos. O professor como um simples guardador: inteligência não, que morde. Ao fim de milénios encontramos novos argumentos contra o sapiens: não, excelência, que aqui é a morte, fora com a inverdade que não confirme a nossa sobrevivência. Pois a instituição, senhor, moderniza-se estupidamente com as unhas e o instinto ratados.
O mais é a exaltação: um pouco do avesso da poesia portuguesa nas últimas décadas. A poesia é o animal acossado que, nalgum canto, uiva e se concentra no que dói com raiva e verrina. É o ter sido ladrado pelos lobos. O destino solitário como uma civilização extinta: eis o que se sente sempre ao respirar algum verso, desavindo do outro lado do espelho. O corpo é essa extinção em estranheza, pois dela não temos memória. Um erro já sem medo. Cada gesto ou palavra ou atitude é um escombro; o que, do juízo mais cínico, é atraso irremediável em relação ao mundo, é afinal a mortalidade trémula e doce, não autoritária nem condescendente.
«A mim me largaram
manancial de águas vivas
para escavarem cisternas
cisternas esburacadas
incapazes de reter água»
Jeremias 2:13
E a raiva de Vaz Pinto é a de um trovador diante do reino: mesmo o escárnio é maldizer nos reinos salgados. Que o nosso mais visível não seja a sombra, nem o selvagem prossiga no esconso. Um trabalho que é a arqueologia do presente, arqueologia dessa tão pancada-ruína que levanta. E que, no futuro, seja arquivo vivo.
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