Somos mais do que aquilo que fazemos. A nossa vida
comporta também aquilo em que pensamos, que conjecturamos – e por vezes não se
concretiza. Esboços de vida, caminhos não trilhados, diagramas existenciais
jamais postos à prova, suspeitas por apurar. Por vezes parece que habitamos com
mais força uma paisagem interior do que o próprio espaço físico em que o nosso
corpo está, espaço esse apreendido como fluxo cosmológico que acontece apesar
de nós. Um trabalho que não aceitámos, uma pessoa com quem acabámos por não
ficar, outra que, por melindre, não chegámos a conhecer, um café que não
tomámos, uma língua que não estudámos – em suma, vidas que não vivemos, embora
nos definam. Todas essas reflexões, suspeitas, derivas, fantasias são tempo – e
nós somos, como disse Proust, seres cheios de tempo. Tudo isto me é sugerido
pela leitura de “Coração tão branco”, de Javier Marías, romance publicado em
1992, em Espanha, e agora republicado em português, desta feita com a chancela
da Alfaguara (que, no ano passado, havia editado outrossim “Os enamoramentos”),
depois de a Relógio d’Água o ter publicado em 1994.
Javier Marías publicou romances, contos,
ensaios e crónicas. É um escritor renomado e abundantemente premiado. Será o
bastante acrescentar que o seu nome vem sendo considerado desde há uns anos a
esta parte como o próximo galardoado com o Prémio Nobel da Literatura (embora
ressalve que nem esta nem qualquer outra distinção são índices inequívocos de
qualidade do autor que as ganha – nem do que as não ganham). Traduziu Sterne,
Yeats, Wallace Stevens, Nabokov, Auden, Ashbery, Faulkner. Publica semanalmente
a sua crónica no “El País”.
Voltando à vaca fria, em Javier Marías o fluxo
da acção por vezes tem que esperar. A estrutura narrativa de “Coração tão
branco” assemelha-se à de romances policiais, assente na ocultação da causa de
que se conhecem os efeitos, alimentando-se um raciocínio abdutivo, o que adensa
o suspense. Apesar disso, não é preenchido o tempo que vai do efeito à causa com
sucessivas acções secundárias de cortar a respiração, como é usual em «bestas
céleres» (evocando Alexandre O’Neill). É preenchido, ao invés, com digressões
do narrador sobre vários temas, e com descrições precisas e acesas; algumas, como
as que compõem o retrato de Rank, memoráveis – repletas de símiles, que recrudescem
o sensível das imagens: «O que mais chamava a atenção no seu rosto eram os
olhos extremamente vivos, deslumbrantes às vezes, devido à devoção e à firmeza
com que eram capazes de olhar, como se o que estivessem a ver em cada momento
fossem de uma importância extrema, digno não apenas de ser visto, mas também estudado,
de ser observado de forma exclusiva [...] Aqueles olhos adulavam tudo o que
contemplavam. Aqueles olhos eram de uma cor muito clara, embora não tivessem
nem uma gota de azul, de um castanho tão pálido que, à força da palidez,
adquiriam nitidez e brilho, quase da cor do vinho branco quando o vinho não é
novo e a luz os iluminava, à sombra ou de noite, quase da cor do vinagre, olhos
de líquido, de rapace muito mais que de gato, que são os animais que melhor
admitem essa gama de cores. Todavia, por outro lado, os olhos dele não tinham o
estatismo ou a perplexidade desses olhares, pois eram móveis e cintilantes
[...]” (pp. 98-99). A descrição dos olhos de Ranz, pai de Juan, continuará. Javier
Marías tem o dom de dar a cada palavra o espaço da sua ressonância; a cada
tensão, o tempo do seu desenvolvimento. Uma atenção aos detalhes que nos evoca
por vezes o hiper-realismo.
Eis alguns dos temas sobre os quais o narrador,
protagonista do romance, se debruça: o sentido do casamento, a volubilidade da memória,
a (im)possibilidade da tradução (em sentido estrito e não só), a capacidade de
as palavras fazerem coisas. É sobretudo graças a estas digressões que o livro,
depois de lido, nos acompanhará por uns dias. Importa não somente o engenho da
narração – o qual os autores de origem anglo-saxónica não raro possuem – como o
que está a par dessa narração (os detalhes descritivos, as inferências, a
densidade das reflexões). Isto é, o prazer da leitura não provém apenas do
retardamento da obtenção do objecto de desejo, da expectativa do fim da
angústia provocada por não se saber ainda o final da história, porém de nos
reconhecermos no texto – pois tudo é comparável a tudo, uma história agora
vivida tem semelhanças de família com outras do passado, vividas por outros,
tudo se reflecte em tudo, a vida é uma roda de repetições, ao ponto de nos ser
impossível discernir absolutamente o que nos contaram do que lemos ou vimos em
algum filme ou na televisão e mesmo daquilo que vivemos. Neste romance, até
está por apurar a causa dum suicídio duma antiga mulher do pai (Ranz) do
protagonista (Juan), que se matara, de forma aparentemente inadvertida, com um
tiro no coração. A descoberta dessa causa nem interessa particularmente ao filho,
nem o leitor se sente impelido a conhecê-la. Apesar disso, essa causa é-nos
ocultada ao longo do romance, a sua revelação é mantida em suspenso pelo
narrador autodiegético, factor que adensa o desejo de ler. Há, da parte da
mulher de Juan, Luisa, um desejo de conhecer essa causa. Talvez esta
arqueologia familiar venha apaziguar os «pressentimentos catastróficos» (p. 24)
que o protagonista tem a respeito do seu casamento. Talvez procuremos histórias
para não pensarmos nas nossas – o que nos dá tempo e distância para pensá-las.
Talvez desta forma não haja, depois do casamento de Juan e Luisa, somente
«futuro concreto» (idem) – o tempo
que o corpo durar, a repetição circular do vivido – mas também «futuro
abstracto» (ibidem) – a
imprevisibilidade que nos garante, no fundo, liberdade. Ou seja, a resolução da
história familiar pode bem ajudar o protagonista a deixar de conceber o seu
casamento como o fim dalguma coisa, antes como tarefa a fazer. A explicação da
causa do suicídio significará pouco em si mesma para o casal; importarão,
antes, as inferências, relevantes para o futuro do casamento, que se possam
fazer a partir dela. Uma dessas inferências está relacionada com o poder
destrutivo da paixão: quando levada a sério, pode desencadear efeitos
imprevisíveis: «Nunca mais na vida tornei a ser sério ou, pelo menos, fiz o
possível por isso» (p. 310), disse Ranz. Vida e paixão não são compossíveis.
Daí que a posterior relação com Juana – mãe do protagonista – tenha sido
diferente: «Amei-a com mais cautela, com mais parcimónia, não com tanta
insistência, de forma mais contemplativa, [...] mais passiva». (p. 307)
Por fim, uma breve explicação do título, cujo intertexto
é “Macbeth” de Shakespeare (embora, como o autor, numa entrevista à “Paris
Review”, assinalou, a inspiração tivesse provindo do filme homónimo de Orson
Welles). Quando Lady Macbeth depara com o crime perpetrado pelo marido, diz-lhe
algo enigmaticamente: «My hands are of your color; but I shame / To wear a
heart so white.» Nesta frase, a primeira proposição assinala a partilha da culpa
pelo crime (‘as minhas mãos são da cor das vossas’), enquanto a segunda parece contradizer
a primeira (‘mas envergonho-me de carregar um coração tão branco’), embora
aponte, se lermos a comparação de forma reversível, para uma inocência
partilhada. E de que depende essa inocência, a nossa inocência? Sobretudo da
capacidade de guardar segredos, como aconselha Ranz: «Vês, a nossa vida não
depende dos nossos actos, do que cada um de nós faz, mas do que cada um de nós
sabe, do que sabe que fez.» (p. 318) Por isso, podemos, com o narrador,
concluir que «a frágil roda do mundo é empurrada por desmemoriados que ouvem, e
vêem, e sabem o que não se diz nem tem lugar, nem é cognoscível nem
comprovável.» (p. 41)
Também publicado no melhor amigo
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