Entre 29 de Julho e 5 de Setembro, Etty provavelmente não manteve um diário. Houve uma precipitação dramática na sua biografia. Nesse período ela pede voluntariamente uma convocatória para Westerbork e parte para o campo. Porém, acontecimentos decisivos na vida dela foram certamente a doença e a morte súbita de S. No começo de Setembro de 1942, Etty obteve licença para regressar durante uns dias a Amesterdão. Chega doente. Neste último caderno conservado de Etty, ela descreve a morte de Spier, as saudades que sente de Westerbork e pedaços de recordações de pessoas e situações que havia deixado.
15 de Setembro de 1942. Terça-feira de manhã, às dez e meia.
Tudo junto afinal é capaz de ter sido um pouco de mais, meu Deus. Agora sou lembrada que uma pessoa também tem um corpo. Pensei que o meu espírito e o meu coração seriam incapazes de aguentar tudo, mas agora o meu corpo apresenta-se e diz: «Basta». E neste momento sinto a grande quantidade de coisas que me deste a suportar. Tanta coisa bonita e tanta coisa difícil. E assim que me mostrei pronta a suportar, o que era difícil transformou-se a cada volta em algo bonito. E o que era belo e grande era por vezes ainda mais difícil de tolerar que o sofrimento, de tão dominante que era. Como um só pequeno coração humano consegue passar por tantas experiências, meu Deus; como consegue sofrer e amar tanto. Estou-te muito agradecida, meu Deus, por teres escolhido especialmente o meu coração, nestes tempos que correm, por lhe ter sido dada a oportunidade de passar por tudo o que passou. Talvez seja bom eu ter adoecido, ainda não me conformei com este facto, ainda estou um bocadinho atordoada, à procura e desamparada, mas ao mesmo tempo tento reunir alguma paciência retirada aos poucos de todos os cantos do meu ser. Deverá ser um tipo completamente novo de paciência para uma situação completamente nova, assim o sinto. E hei-de seguir novamente o velho método conhecido e de vez em quando falar comigo mesma nestas linhas azuis. Conversar contigo, meu Deus. Isto está certo? Postas as pessoas de lado, só sinto necessidade de falar contigo. Gosto imenso das pessoas, porque em cada uma amo um pedaço de ti, meu Deus. Porém agora preciso de muito paciência, muita paciência e reflexão, vai ser muito difícil. E agora sou obrigada a fazer tudo sozinha. A melhor e mais nobre parte do meu amigo, do homem que te despertou em mim, já está contigo. O que restou foi um velho senil e mirrado, nos dois quartinhos onde eu vivi as minhas maiores e mais profundas alegrias. Estive à beira do leito e vi-me perante um dos teus últimos enigmas, meu Deus. Dá-me uma vida inteira para entender tudo.
Enquanto estou a escrever isto, sinto que é bom eu ter de ficar aqui. Vivi tão intensamente nos últimos meses que de repente me parece, vendo as coisas agora: nuns meses gastei as provisões para uma vida inteira. Talvez tenha sido demasiado temerária na minha vivência interior, de maneira que esta alagou todas as margens, ou não? Não fui demasiado temerária, se escuto este aviso teu.
Enquanto estou a escrever isto, sinto que é bom eu ter de ficar aqui. Vivi tão intensamente nos últimos meses que de repente me parece, vendo as coisas agora: nuns meses gastei as provisões para uma vida inteira. Talvez tenha sido demasiado temerária na minha vivência interior, de maneira que esta alagou todas as margens, ou não? Não fui demasiado temerária, se escuto este aviso teu.
Etty Hillesum, Diário. 1941-1943 (trad. Maria Leonor Raven-Gomes)
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