15.7.24

Proibido desde já todo o pensamento

Serviço de urgências

Membros contra membros chocam
para se intersectar na cabeça.
Na mesa de dissecação contudo entreolham-se
o estereoscópio e a caneta
para que, do seu fortuito encontro,
jorre toda a beleza —
violenta e sempre pronta
pelos celibatários a ser violada
e desde logo servida sobre a marquesa.
Mas o que importa é o calor dos corpos
quando a mão aperta a memória
e se torna indistinguível
a matéria de uma e de outra —
ou quando, da tracção dos músculos,
de súbito derrama o pensamento.
Indiferente ao sofrimento
o homem adquire o hábito 
de com a mão sopesar
a febre dos outros:
ah! como explodem os corpos
num cenário apocalíptico em technicolor
(sintetizado em tons de ouro e negro)
em que o Silver Surfer e o Ghost Rider
procuram dilatar o destino
o tempo de um segredo.
Não há nada, no entanto, que nos olhos nos atinja
já que tudo se passa entre as mãos
ou no interior da cabeça.
Compreende-se assim os enfermeiros, distraídos —
habituados que estão a confrontar
a estranheza do corpo
com a sua indómita indiferença.
Levantam-se da mesa
e o mundo parece reduzir-se
a uma ligadura branca
que nos cai das mãos
sem que o sentido da vida 
se esclareça.
De olhos fechados, revela-se um interior:
uma massa branca de que se encontra excluída
qualquer forma de incerteza
(nas paredes, uma prescrição única:
proíbido desde já todo o pensamento).

Fernando Guerreiro, Poemas instantâneos

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