10.10.18

Afinidade, pessimismo, morte, afecção, beleza, contemporâneo: sublinhando Maria Filomena Molder

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A seguirmos Goethe, teríamos de entender as afinidades electivas no interior de um jogo de pertenças fatais, que surgem contra todas as regras da moral da época e são hostis mesmo a algumas convicções alheias à moral estabelecida. Os protagonistas desse jogo são sujeitos a sofrimentos vários sem vislumbre de consolação. Mas, habitualmente, não é assim que as coisas se passam, no momento em que se responde a uma pergunta como a sua e se revelam os nossos gostos e amores. E, no entanto, parece que teremos sempre de pagar a dívida a Goethe, pois o sentimento de familiaridade imprevisível que nos assalta quando conhecemos alguém, seja real seja personagem de um livro ou de um filme, revela qualquer coisa que estava oculto ou adormecido e foi despertado. Por ser inelutável tem qualquer coisa de angustiante. Aí temos a sensação que acabámos de nascer para a vida ou que começámos a viver num mundo que acaba de nascer.

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A tendência maior é a de recolher as cinzas do dia. Nela se inscreve a outra tendência, o desejo de fazer frente ao dia. Sou uma contemplativa pessimista, evitando fazer do pessimismo um caderno de encargos. É um combate sem fim.

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Tende-se a acreditar que a morte é um acidente e que poderíamos viver para sempre, se os tubos não entupissem & etc. Isto é uma forma de ideologia que atacou a medicina e transborda todos os dias para os jornais. Por outro lado, a obsessão com a segurança, isto é a confusão entre estar vivo e sentir-se absolutamente seguro é outra forma ideológica que tomou conta de todos os campos da nossa cultura, passando por cima da compreensão precoce em qualquer criança do risco que é viver (aventura, desconhecido, perigo). O medo aumenta exponencialmente e quanto dinheiro se ganha com isto!

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Àquela lista dos meus autores que há pouco apresentou, e que nunca estará completa, acrescento apenas mais um nome: Nietzsche. E bem a propósito, pois é ele que sublinha o perigo de estar sempre a responder aos estímulos (uma vida que se limita a reagir é uma vida doente, dirá Deleuze, muito nietzscheanamente). Sendo o estímulo, não uma coisa que nos afecta, ser afectado é o coração da nossa vida, mas uma agressão que interfere, interrompe, domina e corrompe essa possibilidade de ser afectado. Resistir aos estímulos é uma condição para a saúde da nossa espontaneidade criativa.

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E a beleza? Baudelaire imaginou-a de duas maneiras. Por um lado, como um esgrimista com o qual o ele trava todos os combates possíveis. Se nesse combate o poeta ganhar, não há poema; se ganhar o seu adversário, o poeta sucumbe, gritando de susto, e temos poema. Leia-se o terceiro poema dos Pequenos poemas em prosa, “O confiteor do artista”. Por outro lado, a beleza apresenta-se a si própria como uma mulher incapaz de emoções: “E nunca choro e nunca rio”, inspirando ao poeta “um amor eterno e mudo como a matéria”. É nos “estudos austeros” que lhe dedicam que os poetas “consomem os seus dias”. Leia-se “A beleza” das Flores do Mal. Austeridade, frieza e mudez, eis os atributos da beleza moderna. Em rigor, nos poetas antigos, medievais e renascentistas, não se poderá reconhecer uma tal visão. Esses poetas que menciona são herdeiros de Baudelaire, mesmo que não possam deixar de fazer parte da série dos antigos. Em todos eles a beleza é uma promessa, é um olhar vazio, uma fatalidade. Eles já sabiam que o belo era o fim da belo, quer dizer, já tinha ocorrido esse paradoxo do belo se tornar relativo ao gosto privado de cada um. E os poetas desembaraçaram-se como puderam desse desastre. Por exemplo, que o belo seja tido como uma promessa impede a sua submissão ao desbarato do gosto privado, ao mesmo tempo que há sempre o risco da promessa não ser cumprida.
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Convém aqui aplicar a fórmula de Aldo Rossi: “A cidade é um acampamento de vivos e mortos”. A arte também. Se formos à etimologia, contemporâneo vai dar no mesmo que moderno. Curioso, não é? Pois os exercícios acrobáticos que se fizeram para estabilizar, até ao anquilosamento, as suas diferenças e mesmo a sua oposição, foram de monta. Deram para vários circos. 
Benjamin afirma que, num sentido excêntrico, em todas as épocas os homens foram modernos, isto é, todos eles estiveram diante de um abismo. Sentido excêntrico significa não-historicista, o mesmo sentido que faz com cada poeta e cada artista descubra a sua própria tradição, a sua própria história da poesia ou da arte, onde poderão estar, lado a lado, uma maquete suméria de um túmulo e uma escultura do Chillida; um verso de Homero e outro de António Reis.


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