25.1.18

O gato e a calma

Ao longo destes anos, nas minhas estadias longas ou breves passagens por aqui, fui, creio eu, ora feliz ora infeliz, em proporções quase iguais. Tanto fazia, aliás, quanto mais não fosse porque eu não vinha com intuitos românticos mas para trabalhar, para terminar um artigo, para traduzir, para escrever dois ou três poemas, se tivesse essa sorte; para ser, simplesmente. Isto é, nem para uma lua-de-mel (o mais perto que estive disso foi há muitos anos, na ilha de Ischia, ou então em Siena) nem para um divórcio. Trabalhava, portanto. A felicidade ou a infelicidade vinham apenas por acréscimo, embora às vezes prolongassem a sua estadia para além da minha, como se resolvessem escoltar-me. Convenci-me há muito da virtude que é não nos consumirmos na vida das nossas emoções. Há sempre trabalho bastante para nos entreter, não falando já do vasto mundo lá fora. Em última análise, há sempre esta cidade. Enquanto ela existir, não creio que eu, ou seja quem for, possa deixar-se hipnotizar ou ofuscar por tragédias românticas. Lembro-me de um dia — o dia em que me preparava para partir, ao fim de um mês aqui passado sozinho. Acabava de almoçar numa pequena tratoria, no extremo mais distante das Fondamente Nuove, peixe grelhado e meia garrafa de vinho. Com essa refeição no papo, dirigi-me para o sítio onde ficara alojado, para ir buscar as malas e apanhar um vaporetto. Caminhei um quarto de milha ao longo dos Fondamente Nuove, um pequeno ponto móvel nessa gigantesca aguarela, e depois virei à direita, no hospital de Giovanni e Paolo. Estava um dia quente, soalheiro, o céu azul, um perfeito encanto. E, de costas para as Fondamente e para San Michele, rente ao muro do hospital, quase a aflorá-lo com o ombro esquerdo e dando a cara ao sol, de olhos semicerrados, senti de repente: sou um gato. Um gato que ainda agora comeu peixe. Se alguém me tivesse dirigido a palavra nesse instante, eu teria respondido com um miado. Foi uma felicidade animal, absoluta. Doze horas mais tarde, ao aterrar em Nova Iorque, deparei, é claro, com o pior sarilho da minha vida — ou o que nessa altura me pareceu sê-lo. Porém o gato, dentro de mim, resistia ainda; se não fosse esse gato, estaria agora a trepar pelas paredes nalgum manicómio de luxo.


Joseph Brodsky, Marca de água



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