24.1.18

A autonomia do olhar

O olho é o mais autónomo dos nossos órgãos. É-o porque os objectos da sua atenção se situam inevitavelmente no exterior. Salvo num espelho, o olho nunca se vê a si próprio. É o último a fechar-se quando o corpo adormece. Permanece aberto quando o corpo está paralisado ou morto. O olho continua a registar a realidade em todas as circunstâncias, mesmo quando não há razão aparente para o fazer. Porquê?, perguntar-se-á. E a resposta é: porque o meio circundante é hostil. A vista é o instrumento da adaptação a um meio que permanece hostil, por muito bem que a ele nos adaptemos. A hostilidade do meio ambiente cresce proporcionalmente à duração da nossa presença nele, e não me refiro apenas à velhice. Em suma, o olho procura a segurança. Assim se explica a predilecção dos olhos pela arte em geral e pela arte veneziana em particular. Assim se explica a apetência dos olhos pela beleza, bem como a própria existência da beleza. Porque, sendo segurança, a beleza é refrigério. Não nos ameaça de morte nem nos agonia. Uma estátua de Apolo não morde, como não morde o caniche de Carpaccio. Quando os olhos não encontram beleza — que é como quem diz, refrigério — ordenam ao corpo que a crie ou, à falta de melhor, habituam-se a descortinar na fealdade virtude. No primeiro caso, confiam no génio humano; no segundo, alimentam-se da nossa reserva de humildade. Esta última é mais abundante e, como todas as maiorias, tende a impor as suas leis. Tomemos um exemplo, a título de ilustração:  uma jovem donzela. Chegados a uma certa idade, miramos as donzelas que passam sem termos por elas qualquer interesse de ordem prática, sem aspirarmos a montá-las. Como uma televisão deixada acesa num apartamento abandonado, o olho continua a transmitir imagens desses milagres de cinco pés e oito polegadas, a cuja perfeição não faltam o cabelo castanho claro, o desenho oval do rosto, à Peruigno, os olhos de gazela, o busto de ama de leite, a cintura de vespa, os vestidos de veludo verde-escuro, e os tendões finos como lâminas. O olho pode avistá-las na igreja, num casamento qualquer ou, pior ainda, na secção de poesia de uma livraria. Dotado de excepcional acuidade, ou pedindo auxílio ao ouvido, o olho pode descobrir a identidade (associada a nomes tão assombrosos como, por exemplo, Arabella Ferri) e, para mal dos seus pecados, a desanimada firmeza das ligações românticas dessas donzelas. Indiferente à inutilidade de tais dados, o olho continua a recolhê-los. De facto, quanto mais inúteis os dados, mais viva a atenção. Perguntar-se-á porquê, e a resposta está em que a beleza é sempre exterior; é, além disso, a excepção à regra. São esses dois aspectos — a sua localização e a sua singularidade — que fazem oscilar descompassadamente o olho, ou — no linguajar da humildade militante — que o desencaminham. Porque a beleza é onde o olho descansa. O sentido estético é gémeo do nosso instinto de auto-conservação, e é mais digno de confiança do que a ética. O principal instrumento da estética, o olho, é absolutamente autónomo. Em matéria de autonomia, só as lágrimas lhe levam a palma.

Joseph Brodsky, Marca de água



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