11.1.18

Dançar para não sucumbir ao peso

(…) Vendo pouco e vendo mesmo o que não é o melhor, ele consegue perceber a condição interna daquilo, perceber a relação connosco. Isso é extraordinário. Mas há casos em que o autor, estou a pensar em Nietzsche, é um viajante. Abandonou tudo: abandonou a universidade, abandonou a casa, para além da casa dos pais nunca chegou a ter casa fixa, e toda a vida se tornou um viajante, um amigo do movimento, de andar. É muito profunda a relação dele com a natureza, e também com a arte, com a literatura... Ele leu tudo o que havia para ser lido do ponto de vista literário, quer poesia, quer romance, quer filosofia, quer textos de natureza científica, e tudo absorveu para aquilo a que queria chegar. Aí eu acho que há sempre uma antecipação no sentido: há uma pré-orientação da nossa vida que não foi feita por escolha, e essa pré-orientação ou é preenchida ou não é preenchida, conforme nós fazemos isto ou fazemos aquilo. À antecipação tem de estar ligado uma capacidade de ser afectado muito, muito, muito profunda.

E isso é-nos dado?

É, mas temos de exercitá-lo. A capacidade de afecção de Nietzsche é terrível. Fere-o constantemente. Ele é ferido, ele sofre, tem uma sensibilidade apuradíssima, mas essa afecção, essa capacidade de ser afectado, e de umas vezes conseguir absorver e de outras vezes não conseguir absorver, dá essa vivacidade, essa instabilidade, essa riqueza, essa espécie de inesgotabilidade e, ao mesmo tempo, a sensação que nós temos de nunca conseguirmos reconduzir a uma teoria bem constituída o pensamento de Nietzsche. Ele é suficientemente prudente para perceber que essas afeções que recebe, absorve e não absorve, e que transforma e transmuta no seu próprio pensamento, são sempre parciais. Somando as parcialidades não temos um todo. A parcialidade tem a sua própria riqueza, e, portanto, não convém pô-las a lutar umas contra as outras. Agora cada vez gosto mais da parcialidade. Não da parcialidade ingénua e/ou maldosa, mas da parcialidade que percebe que o todo nunca se pode desenhar e tem que se amar essa fraqueza para o tesouro aparecer, porque o tesouro está nessa parcialidade.

Esse é um exercício de humildade, de conhecer a própria medida?

Exactamente, de conhecer a sua medida, por um lado, e ao mesmo tempo perceber que em cada limite há uma desmedida, há uma riqueza extrema.

(…)

E o que está a dizer é que isso é uma espécie de coreografia?

É, é uma espécie. A dança é uma disposição do corpo dos seres humanos para a leveza, não é um sistema de regras, é uma disposição para o ritmo, e para a ligação de uma coisa para a outra, e tem a ver certamente com a força da gravidade, com a maneira de lutar contra a força da gravidade, e de fazer da força da gravidade um aliado, tirar-lhe aquilo que pode constituir uma elevação: como também os funâmbulos, maravilhosos, que andam pela corda, acho que isso é das coisas mais maravilhosas que há no mundo.

Fazer aquilo que não fomos feitos para fazer?

Mas que o nosso corpo é capaz de fazer, essa luta constante contra a gravidade. A posição erecta é uma posição anormal do ponto de vista do equilíbrio. Andar é das coisas mais perigosas que existem. Estamos sempre prestes a cair e inventámos maneiras de cair, a dança é uma delas, mágica. E tudo tem a ver com os pés. Nós só nos levantámos por causa dos pés, como libertámos a mão por causa dos pés. O André Leroi-Gourhan, que eu amo profundamente, o paleontólogo, que sempre estudei, tem um livro que se chama Mécanique Vivante, onde explica o prodígio de nos erguemos, e o difícil que isso é. Isso fez com que também a nossa testa pudesse aumentar e o nosso cérebro se pudesse desenvolver. É tudo por causa dos pés, já viu? Portanto, a dança é a coisa mais natural, depois de andar. Infelizmente não se vêem fazer hoje em dia na rua as invenções das crianças, dos jogos de saltar, de correr, suspender a corrida, as danças de roda; dantes víamos as crianças todas brincar na rua. Isso empobrece não só o corpo como a inteligência, a vida inteira.

Estar parado? Preso?

Por isso é tão impressionante esse filme do Sokurov sobre o Fausto de Goethe, porque nós percebemos que o Sokurov viu uma coisa que Goethe via muito bem na vida, mas que nem toda a gente vê no Fausto: é que os homens estão presos, e prendem tudo. Lembra-se que eles passavam sempre por umas ruas que tinham uns arcos estreitíssimos, e estavam sempre todos a arrastar-se para passar e todos os animais estão presos, até o gato, todos estão presos naquele filme. Acho que nunca vi nada tão destrutivo, no sentido de perceber a mutilação da vida a que o homem se vota, em relação a si próprio, a autodestruição, e em relação a tudo o que há à volta, a crueldade, essa prisão está ligada a uma grande crueldade: impedir o movimento, o gato está dentro de uma gaiola, e os pássaros, e os homens dentro das gaiolas, todos, todos. E depois há um pequenino fragmento-verso que o Fausto diz logo no princípio, e não volta a repetir, ele diz aquilo e passa à frente, e o Sokurov pôs o Fausto a repetir isso três vezes: "a eterna cantiga", der ewige Gesang. E "a eterna cantiga" é a dor, é sentir-se preso, é não conseguir amar, essa é a eterna cantiga. Mas quando nós lemos o Fausto não se dá por isso, passa-se à frente.

(…)





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