15.1.18

O poeta é um menino que carrega água na peneira


Prefiro as linhas tortas, como Deus.
Manoel de Barros

Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão intensamente.
Clarice Lispector

Em raras circunstâncias a poesia aconteceu tão alegre como em Manoel de Barros. Poesia em deflação, atenta ao minúsculo, sem delírios de grandeza. Tão atenta ao minúsculo da natureza como à das sílabas, de uma subtileza raras vezes atingida. Do fulgor de quem descobre a vida enquanto escreve, de quem pensa o estar aqui e o ofício de poeta fazendo. Ofício de experimentação e descoberta sem a inocência de julgar saber-se: “Ocupo muito de mim com o meu desconhecer” (p. 286). Caso em que, como em tanta arte, é no desconhecimento de si que se descobre a alteridade, por dentro do silêncio: “Ó solidão, opulência da alma!” (p. 291). Por onde cresce maior rigor de atenção, numa inércia em que cresce o desejo: “A inércia é meu ato principal” (p. 328). Uma poesia consciente da derrota de viver, mas também do fracasso da tentativa de cada poema para representar a vida, ou, eventualmente, para salvar: “A força de um artista vem das suas derrotas” (p. 334). É um programa poético que segue uma via de inquirição da incerteza, da incapacidade de compreender e compreender-se, pois saber pode tornar-se insuportável: “As coisas muito claras me noturnam” (p. 328). Não é possível compreender tudo, e até é melhor nem tentar fazê-lo. De certo ponto de vista, é devido à ausência de compreensão absoluta, de verdade, que vivemos em ficção: “Deus deu a forma. Os artistas desformam. / É preciso desformar o mundo: / Tirar da natureza as naturalidades. / Fazer cavalo verde, por exemplo” (p. 334). O poema como recriação do mundo, cosmogonia feita por esse ser trôpego que é o humano.

Os poemas de Manoel de Barros não têm uma forma rígida, segundo este processo de deformação do mundo: “Por pudor sou impuro” (p. 330), lê-se num aforismo de “Livro sobre nada”. É importante, eticamente falando, não desejar a pureza nem a ordem, a palavra definitiva, mantendo-se a liberdade e a inventividade, rejeitando-se a rigidez formal. É nesse espaço de recriação que a imaginação de Manoel de Barros explode, em escrita aberta ao inesperado: “Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem” (p. 203). É um ofício poético que se desenvolve imaginativamente a partir do vazio da página em branco, do vazio em que o desejo se expande: “Ando muito completo de vazios” (p. 292). Porque a criação é colocar coisas no vazio, conseguindo o poeta desviar-se dos usos comuns da língua, e ainda de formas de vida de massa, pouco éticas: “Veja que bugre só pega por desvios, não anda em / estradas – / Pois é nos desvios que encontra as melhores / surpresas e os ariticuns maduros” (p. 301). Nestes versos, alude-se àquele que será, porventura, o espaço predominante nos versos de Manoel de Barros, o pântano, onde “ninguém pode passar régua” (p. 193), lugar com os seus homens desviados e indolentes, os seus rios profundos, caudalosos e violentos, os seus frutos protuberantes, os seus insetos e rãs que esperam a tempestade para se multiplicarem, as suas árvores secas e espinhosas, agressivas, os seus urubus frenéticos, os seus pássaros de nome estranho, os tatus deletérios, os quatis armando banzé, a profusão do seu capim. O pântano é representativo daquilo que cresce em potência e energia, do desvio criador, como se evidencia em livros como “Arranjos para assobio”. É em torno desta força da natureza que se definem os equilíbrios, as intensidades e os humores no mundo humano. Mas se, sobretudo nos primeiros livros, o pântano está muito presente, ainda que em aspectos particulares, a poesia de Manoel de Barros dirige-se depois especialmente para o ínfimo intrínseco ao processo de escrita: “A poesia está guardada nas palavras – é tudo que / eu sei. / Meu fado é o de não saber quase tudo. / Sobre o nada eu tenho profundidades. / Não tenho conexões com a realidade. / Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. / Para mim poderoso é aquele que descobre as / insignificâncias (do mundo e as nossas)”, diz “Poema” (p. 384). Uma atenção ao microscópico e ao inútil passa a ser o método de construção do poema de Manoel de Barros, em torno de nada, onde nada (decisivo, poético) acontece: “Escrever o que não acontece é tarefa da poesia” (p. 438). Os poemas de Manoel de Barros são da calma serena e madura do depois do entusiasmo e da vaidade. Continua o poema, com ironia: “Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. / Fiquei emocionado e chorei. / Sou fraco para elogios” (pp. 384-385). Poesia que se estriba na necessidade ética do inútil. O poeta parece mais tonto do que os outros humanos, mas, afinal, possui a lucidez e a melancolia de viver a derrota, a incerteza e a ausência de razão: “Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia. / Eu não preciso de fazer razão” (p. 387). Percebe-se muito claramente o posicionamento estético e ético de Manoel de Barros nos seus versos lúcidos e cheios de humor: “Mosca dependurada na beira de um ralo – / Acho mais importante do que uma joia pendente. // Os pequenos invólucros para múmias de passarinhos / que os antigos egípcios faziam / Acho mais importante do que o sarcófago de Tutancâmon. // O homem que deixou a vida por se sentir um esgoto – / Acho mais importante do que uma Usina Nuclear. / Aliás, o cu de uma formiga é também muito mais / importante do que uma Usina Nuclear. // As coisas que não têm dimensões são muito importantes. / Assim, o pássaro tu-you-you é mais importante por seus / pronomes do que por seu tamanho de crescer. // É no ínfimo que eu vejo a exuberância” (p. 323). É impossível não encontrar aqui a alegria e a sageza. Para onde dirigir a atenção, tantas vezes dominada pelo grandioso? Grandioso que, de facto, é o mais mesquinho e amesquinha.


O poeta sublinha a importância do pequeno, que vive em despropósito, e dá atenção ao inútil, segundo a imagem de “O menino que carregava água na peneira” (pp. 449-450). Manoel de Barros é um ser de minúcia que nunca desaprendeu a arte da delicadeza e da atenção ao outro, como esse menino entretido nos seus despropósitos, roubando o vento e correndo com ele fechado na mão para mostrar aos irmãos. O poeta, como este menino, é alguém que “gost[a] mais do vazio do / que do cheio”, pois os vazios “são maiores e até infinitos”, enquanto que a vida em sistema, conquanto, aparentemente, menos permeável à desilusão, já está completa, nela o sujeito não pode entrar. O poeta é o ser traquina e “cismado” que faz as suas “peraltagens” com as palavras, descobrindo, através delas, o múltiplo e o desconhecido de si mesmo: “No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, / monge ou mendigo ao mesmo tempo” (p. 450). Exploração do território vasto da intimidade, eis a poesia. E quão tonto é o poeta!, e disponível em permanência para o confronto com o vazio, eticamente certeiro nos seus despropósitos: “A mãe falou: Meu filho, você vai ser poeta. / Você vai carregar água na peneira a vida toda, / Você vai encher os vazios com as suas peraltagens. / E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos”.


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