10.1.18

Sê calmo

— Acabaste! Vai para o raio que te parta!
largo um berro ao tamanho da montanha — espera. Estás louco, como é que te deixas enlouquecer? Sê calmo. Há o universo vazio e tu nele. Recupera em ti a grandeza no que de grande inventaste fora de ti. Sou eu! Vou inventar a palavra! Vou criá-la articulada na minha boca, na dureza dos meus ossos — ó ficção da minha grandeza para a minha miséria excessiva! Para o raio que te parta! Estou só, sou eu, não há nada que possa ser em vez de mim — espírito da montanha, dos astros, do universo. Porque afinal, ó tu, deixa-me pensar bem, há uma lei acima de ti, que é que eras tu afinal? Há uma ordem universal, tu eras apenas a expressão imediata dessa ordem, tu eras um funcionário, um regente, um delegado
— Espírito do mundo!
que ordem, que merda? venho à varanda, grito para o universo, sento-me de novo confundido. Estás só, estás só e em silêncio, aguenta em ti tudo o que é de ti — berro desvairado, calo-me no grande silêncio que alastra pela tarde, os olhos doridos, o queixo tremente. Estou só comigo, que destino dar a isto? Estás só contigo, imenso e miserável, sossega. O Sol desaparece dos montes, só um breve clarão ainda pelo céu. Não quero nada, não quero nada, quero só estar tranquilo — mas tu estás tranquilo. Um acesso de loucura, um excesso de ti — estás bem. Se estiveres calmo, estás bem. As ideias são fabricadas nos nervos, põe os nervos no seu lugar. Há uma ordem da vida mais alta do que os deuses, há um Deus mais alto que todos eles, mais alto do que o que pensas para os deuses e para essa ordem. Há as mãos que dela se estendem para o repouso do teu cansaço. Dorme. Há uma harmonia do universo, repousa nela o teu excesso. Há uma harmonia de ser — sê. Com o coração puro e tranquilo — meu coração. A noite vem aí e o seu silêncio definitivo. Haverá estrelas no céu e o seu sorriso de piedade para ti.
— Espírito da montanha!
não grites. Chamarás a atenção das gentes, meter-te-ão num hospício, sê calmo. Se fores calmo e sensato, tudo será tão evidente. Evidente a morte de Sandra e o desvario de Xana e a tua solidão. Respira fundo a imensidão da terra e os astros que vão chegar e o aroma que se desprende da existência de tudo. Respira fundo e olha apenas. Virá a morte quando for a altura de tocares o teu limite e o teu corpo esgotar tudo o que nele existiu. Reconhecerás então que todas as ideias sobre ele são de mais — o que é uma ideia? Porque uma ideia é também um acto de vontade — não penses. Toda a vida tem em si as ideias de que precisa, não há necessidade de promovê-las. Elas nascem do próprio acto de existires, não as procures para além disso. Procurá-las é tecê-las no vazio de si, não procures. Uma ideia é um acto de energia, elas são a expressão vital da juventude, tu estás tão velho. Recolhe-te à humildade de ti, a velhice não pensa. Como um sono final, a grande noite. Como um sono, o mais que te pertence é ter vontade de dormir. Bruxuleio subtil e débil no céu da tua mente, dorme. Constrói-se uma teia enorme de ideias, a vida passa sempre por onde a não teceste, as ideias servem só onde não servem. Olha apenas à tua volta, distraidamente olha. Morte e vida e paixões e sonhos e vitórias e desilusões, como um ferro-velho das valetas, a vida cumpre-se indiferente pela sua estrada real — esquece. Então terás inscrito o teu ser na Grande Ordem do Universo, a Grande Lei será a tua lei sem que procures saber qual é a tua lei. A tua lei é existires com um mínimo de atenção ao que fores existindo. Cumpre-te como homem que existiu, não tentes ir além de ti, porque a Ordem está em ti, vasta, transbordante, imensa como os limites do mundo. Repousa aí no centro da tua vida tão misteriosa e tão simples. É o aviso da noite que se aproxima, recolhe-te a ela com a gratidão e a humildade com que deves entender-te.
— Espírito do universo!
não grites. Já assentámos que não.
— Mas eu quero saber!
que é que queres saber? Tudo está sabido desde o início, o resto é orgulho e estupidez. Levanta-te. Ergue contigo todo o teu excesso, reúne em ti tudo o que se te furta. Tens de ir fechar as janelas lá de cima. Tens de fechar as janelas todas. Tens de ir ouvir o Pinto que ficou parado no "o" de "privilégio". Tens de ir chamar a Deolinda. Terás fome? podes ir à vila jantar ou talvez Deolinda te prepare alguma coisa para hoje. O dia morre devagar, o teu cansaço, a tua desistência. A mulher que cantava calou-se definitivamente. O seu trabalho cumpriu-se e houve música ainda como um enfeite desnecessário. As aves riscam o céu na satisfação do fim. Conta-se de algumas que cantam ao morrer. Mas mesmo que não cantem, o animal cumpre-se na aceitação. Sê calmo. Aceita. E a vida inteira se reverá em ti como uma fracção do ser que não estava a mais e realizou em si a perfeição. A tarde finda. Os campos recolhem-se para a noite que vem aí.

Vergílio Ferreira, Para sempre



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