24.10.15

Sábado

«As pessoas estão, na sua maioria, habituadas ao seu e a qualquer trabalho ou ocupação regular e, quando isso lhes falta, perdem imediatamente o conteúdo da vida e a consciência e não são mais do que um estado mórbido de desespero. A cada um acontece o mesmo que aos muitos outros. Pensam que se regeneram, mas na realidade é um vácuo em que se tornam meio malucos. Assim, todos têm nas tardes de sábado as ideias mais malucas e tudo acaba sempre em insatisfação. Começam por mudar de sítio armários e cómodas, mesas e cadeiras e mesmo as próprias camas, escovam os fatos nas varandas, engraxam os sapatos como loucos, as mulheres sobem para os peitoris das janelas e os homens vão para a cave e levantam aí nuvens de pó com os vasculhos. Famílias inteiras acham que têm de fazer arrumações e atiram-se ao recheio das suas casas e remexem-no de uma forma louca e enlouquecem elas próprias. Ou deitam-se e entregam-se aos seus padecimentos, refugiam-se nas suas doenças, que são doenças permanentes, de que se lembram ao acabar o trabalho, nas tardes de sábado. Os médicos conhecem isso, nos sábados à tarde os seus serviços são requeridos mais do que em qualquer outro momento. Com o largar do trabalho, começam a fazer-se sentir as doenças, de repente aparecem as dores, a famosa dor de cabeça de sábado, as palpitações do coração dos sábados à tarde, desmaios, acessos de fúria. Durante toda a semana as doenças são reprimidas, acalmadas pelo trabalho e mesmo por qualquer simples ocupação, mas nas tardes de sábado fazem-se sentir e a pessoa perde imediatamente o equilíbrio. E quando aquele que acaba de trabalhar ao meio-dia se apercebe pouco depois nem que seja só da sua verdadeira situação, que é de qualquer modo sempre uma situação desesperada, seja ele quem for, seja o que for, esteja onde estiver, é forçado a dizer a si próprio que não é senão uma pessoa infeliz, mesmo que afirme o contrário. Os poucos felizes que o sábado não deita abaixo confirmam apenas a regra. No fundo, o sábado é um dia que todos receiam, ainda muito mais que o domingo, pois no sábado todos sabem que têm ainda pela frente o domingo e o domingo é o dia mais terrível, mas ao domingo segue-se a segunda-feira e esta é dia de trabalho, o que torna o domingo suportável. O sábado é temível, o domingo é terrível, a segunda-feira traz o alívio. Qualquer outra afirmação é malévola e estúpida. No sábado acumula-se a trovoada, no domingo descarrega, a segunda-feira traz o alívio. O homem não gosta da liberdade, tudo o mais é mentira, ele não sabe o que fazer com a liberdade, mal se encontra livre ocupa-se com o abrir de guarda-fatos e cómodas, com a ordenação de papéis antigos, procura fotografias, documentos, cartas, vai para o jardim e revolve a terra ou corre em qualquer direcção de uma forma inteiramente absurda e inútil, quaisquer que sejam as condições atmosféricas, e chama a isso passeio. E onde há crianças, estas são educadas no sentido da famosa ideia de matar o tempo e irritam-nas e dão-lhe sovas e esbofeteiam-nas, para que elas produzam o caos, que na verdade é a salvação. E, por outro lado, o que há de mais horrível do que um passeio ao sábado à tarde, do que uma visita a parentes ou conhecidos, na qual se satisfaz a curiosidade e se destrói a relação de parentesco ou de conhecimento? E se as pessoas lêem, massacram-se na realidade com um castigo imposto a si próprias, e nada é mais ridículo que o desporto, esse hábito tão em voga para a completa insensatez do indivíduo. O fim-de-semana é o assassinato de cada indivíduo e a morte de cada família. No sábado, depois de terminar o trabalho, o indivíduo e, portanto, cada um encontra-se de súbito completamente só, porque as pessoas vivem, na verdade e na realidade, apenas com o seu trabalho durante toda a vida, têm, na verdade e na realidade, apenas o seu emprego, mais nada. Nenhuma pessoa pode ser para outra um substituto do emprego, ela não se arruína nem sucumbe se perder uma pessoa, mesmo que seja para ela crucial, a mais importante, a mais amada, mas, se lhe tirarem o trabalho e o emprego, definha-se e daí a pouco está morta. As doenças adquirem-se onde as pessoas não estão inteiramente ocupadas, têm pouco que fazer, elas não se deviam queixar de ter trabalho demais, mas de ter de menos, reduz-se o trabalho e as doenças expandem-se, onde se reduz o trabalho e a ocupação toda a gente se torna infeliz. Deste modo, o trabalho, que é em si insensato, passa a ter um sentido, a sua verdadeira finalidade. Aos sábados à tarde havia primeiro o silêncio característico dessas tardes, a calma antes da tormenta, mas de repente as pessoas precipitavam-se para a rua, tinham-se lembrado dos parentes e conhecidos ou mesmo só da natureza, de que havia o cinema ou um espectáculo de circo, ou refugiavam-se no jardim e começavam a revolver a terra. Mas de qualquer modo e por todos os motivos, era frustrados que faziam o que então estavam a fazer. É óbvio que, quem não se refugiava numa actividade e julgava que podia passar o seu tempo só com a reflexão e vencer o seu estado de espírito ameaçado, muitas vezes mortalmente, com recurso à meditação, depressa se entregava, e então por completo, à sua infelicidade pessoal. O sábado foi sempre o dia dos suicídios e quem alguma vez lidou bastante tempo com os tribunais sabe que oitenta por cento dos assassinados foram mortos ao sábado. Durante toda a semana, tudo o que necessariamente torna uma pessoa insatisfeita e infeliz, porque ela se concentra na insatisfação e na infelicidade, é abafado, no sábado, porém, depois de terminado o trabalho, a sua insatisfação e a sua infelicidade voltam a aparecer, e cada vez com maior crueldade. E aos sábados todos procuram descarregar para cima de outro a sua insatisfação e a sua infelicidade. Depois de terminado o trabalho, cada um leva a insatisfação e a infelicidade para casa, onde também não o espera senão insatisfação e infelicidade, e aí as descarrega. Como consequência, o sábado à tarde tem por toda a parte, onde quer que haja pessoas e pessoas se reúnam, um efeito devastador. Onde várias pessoas vivem juntas, como nas famílias, elas não o aguentam e tem de haver uma explosão, e onde uma viver absolutamente sozinha e, portanto, solitária e num completo isolamento, isso constitui também uma situação horrível. Os sábados são os verdadeiros homicidas em todo o mundo e os domingos tornam esse facto consciente da maneira mais insuportável e as segundas-feiras adiam de novo a insatisfação e a infelicidade por toda a semana, até ao sábado seguinte, até ao próximo agravamento do estado de espírito. Eu próprio detestava o sábado e o domingo, pois nesses dois dias, que eu tanto receava, era impiedosamente confrontado com a miséria dos meus, nove pessoas em três divisões enervavam-se umas às outras de manhã à noite e, dependentes como estavam do pouco que o meu tutor conseguia ganhar e da arte culinária da minha mãe, tinham permanentemente fome e nada que vestir e recordo-me de que, por falta de roupas, trocavam entre si os sapatos e os casacos e as calças, a fim de poderem ir alternadamente à rua como pessoas decentes, só o meu avô é que tinha para si o quarto mais pequeno, mas esse quarto era realmente tão pequeno que ele mal se podia mexer, aí vivia ele, repelido pelo seu meio, entre os seus livros e com as suas ideias irrealizadas e ficava a maior parte do tempo, para poupar a lenha que quase não havia, embrulhado numa velha manta e sentado à secretária, mas sem conseguir trabalhar.»



Thomas Bernhard, Autobiografia




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