22.10.15

Impasse na situação poética do país


As leis, a revolução e a poesia, segundo Gonçalo M. Tavares.



Como se faz uma revolução?
Sobre o artesanato explosivo


— Mas como é que se faz uma revolução? Um artesão, por exemplo, pode fazer uma revolução como faz uma jarra?
— Não é bem a mesma coisa.
— Não?
— Uma revolução não é um objecto, não é uma escultura, não é sequer um edifício. Uma revolução não se faz como os engenheiros ou os artesãos fazem coisas.
— Não?
— Uma revolução é uma coisa que não se vê, que não tem um material. Não é feita de pedra, nem de madeira nem de barro.
— Que estranho.
— Exactamente. Uma revolução não ocupa espaço, mesmo depois de ser feita.
— Não ocupa espaço? Não tem largura, comprimento ou altura? Se é assim, então não existe.
— Existe sim. Uma revolução, por exemplo, altera as leis.
— As leis...
— Exactamente. As leis são também coisas que não ocupam espaço como uma mesa ocupa espaço, mas na verdade são essenciais.
— Isso bem sabemos.
— Na verdade, pensando bem, as leis até ocupam espaço, bem mais espaço do que um palácio.
— Como assim?
— As leis ocupam todo o espaço de um país, só que não se vêem. Não pesam.
— Não percebo.
— É assim mesmo. As leis são como o oxigénio: estão em todo o lado mas não as vês.
— É uma formulação possível, mas estranha.
— E é por isso mesmo que as revoluções são importantes. As revoluções alteram o oxigénio, a atmosfera, em suma, as leis – e isso é que é significativo. Deitar abaixo prédios ou palácios ou mandar construir novos palácios, isso é pouco relevante.
— Pensava que um dos passos imprescindíveis para uma revolução era deitar edifícios abaixo.
— Isso é para crianças. O mais difícil é deitar abaixo certas leis e pôr, no seu lugar, outras. Isso é que é complicado.
— Portanto, a revolução não é apenas uma ginástica social ou política.
— É isso. Quando levantas os braços ao lado de milhares de outros braços, o que parece uma aula de ginástica colectiva passa a ser uma revolução se, em vez de dizeres: 1, 2, 3, disseres: acabemos com a lei Y. Entendes?
— Mais ou menos.
— Uma aula de ginástica e de treino coral transforma-se em revolução se os gestos forem dirigidos politicamente e se o conteúdo dos cantos for também político. Ou seja, reclamam uma mudança de oxigénio, uma mudança de ar na cidade.
— De ar...
— Trata-se de mudar as leis, ou seja, as palavras que estão num código legislativo.
— No fundo, faz-se uma revolução para mudar de letras. É isso?
— Não é para mudar de letras, não. As letras são as mesmas. Uma revolução não muda de alfabeto. Nas revoluções não se exige passar do nosso alfabeto para o alfabeto cirílico, por exemplo.
— Mas isso sim, seria uma grande revolução.
— Talvez. Mas o que se exige é mudar a ordem das letras, a combinação das letras, a forma como as letras – ao lado umas das outras – formam palavras. No fundo, queremos uma nova combinação entre palavras.
— As revoluções seguem assim a metodologia que alguns poetas aconselhavam: promover uma nova combinação de palavras. Encontros raros entre palavras, era uma das definições de poesia.
— Uma nova combinação entre palavras velhas, entre palavras que já existiam.
— Exacto.
— É isso que é mudar de leis: mudar a combinação das velhas palavras. Por exemplo, um estava um SIM aparece um NÃO, e vice-versa.
— Fazemos então uma revolução para encontrar novas combinações de linguagem.
— Como os poetas, eu diria que, se necessário, pegam em dinamite.
— Mas não há dinamite poético – ou há?
—   Ah, meu caro, meu caro!, sabe tão pouco de substantivos como de explosivos. 


O torcicologologista, Excelência, Gonçalo M. Tavares



Portanto: as leis são como o oxigénio, as revoluções mudam as leis, mudam o oxigénio. Mudam o oxigénio propondo novas combinações de letras. Uma revolução poética, por seu turno, é uma nova combinatória das palavras de sempre. Transforma uma palavra portátil numa palavra poética (usemos os termos de Ruy Belo).

Este diálogo, do meu ponto de vista, fala silenciosamente com «A revolução das letras», uma das histórias do Têpluquê de Manuel António Pina:

«Mas por mais que os gramáticos fizessem nunca mais conseguiriam meter as letras na ordem alfabética. E depois das letras revoltaram-se as palavras, e depois os livros, e depois as bibliotecas, e depois tudo.»
 
As letras começam a revolução. Depois são seguidas por tudo.




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