As leis, a revolução e a
poesia, segundo Gonçalo M. Tavares.
Como se faz uma revolução?
Sobre o artesanato explosivo
— Mas como é que se faz
uma revolução? Um artesão, por exemplo, pode fazer uma revolução como faz uma
jarra?
— Não é bem a mesma
coisa.
— Não?
— Uma revolução não é um
objecto, não é uma escultura, não é sequer um edifício. Uma revolução não se
faz como os engenheiros ou os artesãos fazem coisas.
— Não?
— Uma revolução é uma
coisa que não se vê, que não tem um material. Não é feita de pedra, nem de
madeira nem de barro.
— Que estranho.
— Exactamente. Uma
revolução não ocupa espaço, mesmo depois de ser feita.
— Não ocupa espaço? Não
tem largura, comprimento ou altura? Se é assim, então não existe.
— Existe sim. Uma
revolução, por exemplo, altera as leis.
— As leis...
— Exactamente. As leis
são também coisas que não ocupam espaço como uma mesa ocupa espaço, mas na
verdade são essenciais.
— Isso bem sabemos.
— Na verdade, pensando
bem, as leis até ocupam espaço, bem mais espaço do que um palácio.
— Como assim?
— As leis ocupam todo o
espaço de um país, só que não se vêem. Não pesam.
— Não percebo.
— É assim mesmo. As leis
são como o oxigénio: estão em todo o lado mas não as vês.
— É uma formulação
possível, mas estranha.
— E é por isso mesmo que
as revoluções são importantes. As revoluções alteram o oxigénio, a atmosfera,
em suma, as leis – e isso é que é significativo. Deitar abaixo prédios ou
palácios ou mandar construir novos palácios, isso é pouco relevante.
— Pensava que um dos
passos imprescindíveis para uma revolução era deitar edifícios abaixo.
— Isso é para crianças.
O mais difícil é deitar abaixo certas leis e pôr, no seu lugar, outras. Isso é
que é complicado.
— Portanto, a revolução
não é apenas uma ginástica social ou política.
— É isso. Quando
levantas os braços ao lado de milhares de outros braços, o que parece uma aula
de ginástica colectiva passa a ser uma revolução se, em vez de dizeres: 1, 2,
3, disseres: acabemos com a lei Y. Entendes?
— Mais ou menos.
— Uma aula de ginástica
e de treino coral transforma-se em revolução se os gestos forem dirigidos
politicamente e se o conteúdo dos cantos for também político. Ou seja, reclamam
uma mudança de oxigénio, uma mudança de ar na cidade.
— De ar...
— Trata-se de mudar as
leis, ou seja, as palavras que estão num código legislativo.
— No fundo, faz-se uma
revolução para mudar de letras. É isso?
— Não é para mudar de
letras, não. As letras são as mesmas. Uma revolução não muda de alfabeto. Nas
revoluções não se exige passar do nosso alfabeto para o alfabeto cirílico, por
exemplo.
— Mas isso sim, seria
uma grande revolução.
— Talvez. Mas o que se
exige é mudar a ordem das letras, a combinação das letras, a forma como as
letras – ao lado umas das outras – formam palavras. No fundo, queremos uma nova
combinação entre palavras.
— As revoluções seguem
assim a metodologia que alguns poetas aconselhavam: promover uma nova
combinação de palavras. Encontros raros entre palavras, era uma das definições
de poesia.
— Uma nova combinação
entre palavras velhas, entre palavras que já existiam.
— Exacto.
— É isso que é mudar de
leis: mudar a combinação das velhas palavras. Por exemplo, um estava um SIM
aparece um NÃO, e vice-versa.
— Fazemos então uma
revolução para encontrar novas combinações de linguagem.
— Como os poetas, eu
diria que, se necessário, pegam em dinamite.
— Mas não há dinamite
poético – ou há?
— Ah, meu
caro, meu caro!, sabe tão pouco de substantivos como de explosivos.
O torcicologologista, Excelência,
Gonçalo M. Tavares
Portanto: as leis são
como o oxigénio, as revoluções mudam as leis, mudam o oxigénio. Mudam o oxigénio
propondo novas combinações de letras. Uma revolução poética, por seu turno, é
uma nova combinatória das palavras de sempre. Transforma uma palavra portátil
numa palavra poética (usemos os termos de Ruy Belo).
Este diálogo, do meu
ponto de vista, fala silenciosamente com «A revolução das letras»,
uma das histórias do Têpluquê
de Manuel António Pina:
«Mas por mais que os
gramáticos fizessem nunca mais conseguiriam meter as letras na ordem
alfabética. E depois das letras revoltaram-se as palavras, e depois os livros,
e depois as bibliotecas, e depois tudo.»
As letras começam a
revolução. Depois são seguidas por tudo.
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