28.8.14

Corpo de deus

A minha unha tem crescido tanto
e entretanto vim morrendo pouco a pouco
temi amei preocupei-me com problemas
fui feliz vivi a vida emocionei-me
Venceram-se diversas prestações
A minha poesia é por vezes mínima e mesquinha
Aqui estou eu perdido na contemplação da unha
a unha pequenina a que regresso sempre
Não canto armas nem barões nem mesmo este mar
que desdobradamente aqui vem rebentar
em ondas de água azul em algas e pedrinhas
Afinal tão instrutivo é
perder-me na contemplação do pé
descalço aqui à doce beira-mar
como aprofundar os mistérios deste dia
em que cristo instituiu a eucaristia
E eu comecei o dia à procura de livros
preocupado com contas a pagar
sem bem saber de mim nem do que é meu
(Falo muito de mim e de muitas maneiras
algumas delas transpostas fantásticas fingidas
mas quem há-de morrer e quem é que nasceu
mais presente a mim próprio do que eu?)
Havia porventura de me recordar
da ceia do senhor do pão do vinho?
O meu pão é todo deste deste dia
e vou buscá-lo à contemplação da unha:
crescem mais as dos pés do que as das mãos
Serei eu que as corto menos vezes?
Será e terá sido sempre assim com toda a gente?
Cristo terá alguma vez sabido isso?
Doer-lhe-ia o pé ao instituir a eucaristia?
Mas o meu pão é todo deste dia
e doem-me muito mais os meus dois pés
do que o corpo de cristo embora meu amigo
Sermões e procissões interpretações doutrinais
talvez mundo perdido para nunca mais
aqui junto do mar junto dos meus
mesmo ao falar de deus eu me esqueço de deus

Ruy Belo, Homem de palavra[s]



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