29.8.14

Imortalidade, amores, ruído

Se imortal, sê-lo-ei pelos temores
em que me criaram mais do que pelas minhas crenças (Antonio Hernández, O mundo inteiro, ed. Língua Morta, p. 42.)

Na imortalidade não se acredita, ela resulta de um temor. Não se acredita nela como se acreditaria em Deus. Ela é um efeito de circunstâncias que infundem temor. Pode ter sido por via da educação, ou mais latamente pela experiência de vida do próprio poeta; circunstâncias de vida, sejam elas quais forem, educaram-no pelo temor. Crer-se imortal é temer. Quem se crê imortal, não faz o que tem a fazer agora, seja lá o que isso for. Foge de si próprio, não se confronta com o seu mundo - ethos -, invisível aos outros. Deixa para mais tarde aquilo que quer fazer, não realizando a sua potência. Só quem se julga imortal procrastina, só quem se julga imortal tem medo de agarrar a vida já, só quem se julga imortal tem tempo e teme realizar a sua potência. Quem se julga imortal teme a morte, pois. Aliás, na página 16, encontra-se este verso do autor: a preguiça, dom dos imortais. Alguém poderia escrever um verso como: o cansaço, dom dos mortais.


Os antigos amores nunca morrem
de morte súbita (idem, p. 46.)

Versos terríveis, educativos. Os antigos amores são duros de ultrapassar, não se apagam simplesmente. Subentende-se que esses amores morrem, é certo, mas de uma forma lenta, a forma – ao que posso saber – mais penosa de morrer. Vão sendo lacerados à medida que envelhecemos, a nossa morte acompanha a morte deles. Seria bom que houvesse um corte que os alijasse definitivamente, poderíamos dizer. Porém não: eles vão morrendo connosco, carregamo-los morrendo, morremos e eles morrem connosco, morremos porque – diria um romântico indefectível – eles morrem connosco. Mas, de outro ângulo – os antigos amores morrem como nos é dado viver.


O seu encanto está nas pausas
com que acompanha a sua melancolia
e então olha o mar e pelos seus olhos
eu sei que amou sem correspondência. (idem, p. 45.)

Fala-se de Contreras, uma das personagens que erra pelos poemas e pelas praias de Antonio Hernández. As poucas palavras são sintoma de desvinculação simbólica. O melancólico Contreras não é um tagarela, interrompe constantemente a fala, extasia-se pela plenitude sem dobras que é o mar. Há no melancólico qualquer coisa de poético, na medida em que também a poesia é pouco – ou nada – comunicativa e se distancia do senso comum. E é graças a essa distância que ela se investe de aura. Há a tentação da tagarelice, da revisitação dos álbuns de família, do fluxo linguístico ininterrupto e clarividente, da aproximação à fala quotidiana – de tornar impossível a boca bilingue. Hernández observa a desatenção e a ineficácia comunicativa de Contreras – e, apiedando-se dele, conhece um pouco mais da errância dos poetas.


A nudez precisa de ser esbatida
e excita mais um corpo despindo-se
do que outro sem roupa, despido. (idem, p. 22.)

A nudez não compele o movimento, não excita. Não gera expectativa nem tão-pouco vontade de fazer. A nudez é um todo, pleno; possui, poderíamos acrescentar, algo de totalitário. Induz passividade, entorpece o desejo. Poderíamos concluir dizendo que a pornografia estiola o desejo.


Qualquer ruído se entranha na cabeça
mais do que um verso genial (idem, p. 33.)

Os poetas compreenderão bem este verso. É-nos dito que um verso é, desde logo, som. Um som que até se pode diferenciar do informe ruído, mas talvez já fosse inferir demasiado. Há quem defenda que o objectivo de toda a poesia é chegar ao grunhido animal. Um automóvel, um trovão, a chuva, o zum-zum dos vizinhos – ruídos que se entranham. Porque nos perturbam, nos ameaçam, se repetem. Até certo ponto, para muitos crentes, uma oração pode bem ser um ruído, isto é, um conjunto informe de sons. Entranha-se portanto o ruído que ameaça ou que salve. Talvez a poesia que se entranha seja justamente aquela que ameaça ou salve. Todavia – um verso não é um trovão que possa matar e quem está vivo e sofre sabe-o bem. E, para acabar com o desespero, para salvar, já existem as orações, conjunto de sons especializado há milénios na tarefa. A poesia pode ser como uma oração ou/e como um trovão.


 [Também publicado n' o melhor amigo]



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