Se imortal, sê-lo-ei pelos temores
em que me criaram mais do que pelas
minhas crenças (Antonio Hernández, O mundo inteiro, ed. Língua Morta, p.
42.)
Na imortalidade não se acredita, ela resulta de um temor. Não se
acredita nela como se acreditaria em Deus. Ela é um efeito de circunstâncias
que infundem temor. Pode ter sido por via da educação, ou mais latamente pela
experiência de vida do próprio poeta; circunstâncias de vida, sejam elas quais
forem, educaram-no pelo temor. Crer-se imortal é temer. Quem se crê imortal,
não faz o que tem a fazer agora, seja lá o que isso for. Foge de si próprio, não
se confronta com o seu mundo - ethos -, invisível aos outros. Deixa para mais tarde
aquilo que quer fazer, não realizando a sua potência. Só quem se julga imortal
procrastina, só quem se julga imortal tem medo de agarrar a vida já, só quem se
julga imortal tem tempo e teme realizar a sua potência. Quem se julga imortal
teme a morte, pois. Aliás, na página 16, encontra-se este verso do autor: a preguiça, dom dos imortais. Alguém
poderia escrever um verso como: o
cansaço, dom dos mortais.
Os antigos amores nunca morrem
de morte súbita (idem, p.
46.)
Versos terríveis, educativos. Os antigos amores são duros de
ultrapassar, não se apagam simplesmente. Subentende-se que esses amores morrem,
é certo, mas de uma forma lenta, a forma – ao que posso saber – mais penosa de
morrer. Vão sendo lacerados à medida que envelhecemos, a nossa morte acompanha
a morte deles. Seria bom que houvesse um corte que os alijasse definitivamente,
poderíamos dizer. Porém não: eles vão morrendo connosco, carregamo-los
morrendo, morremos e eles morrem connosco, morremos porque – diria um romântico
indefectível – eles morrem connosco. Mas, de outro ângulo – os antigos amores
morrem como nos é dado viver.
O seu encanto está nas pausas
com que acompanha a sua melancolia
e então olha o mar e pelos seus olhos
eu sei que amou sem correspondência. (idem, p.
45.)
Fala-se de Contreras, uma das personagens que erra pelos poemas e pelas
praias de Antonio Hernández. As poucas palavras são sintoma de desvinculação
simbólica. O melancólico Contreras não é um tagarela, interrompe constantemente
a fala, extasia-se pela plenitude sem dobras que é o mar. Há no melancólico
qualquer coisa de poético, na medida em que também a poesia é pouco – ou nada –
comunicativa e se distancia do senso comum. E é graças a essa distância que ela
se investe de aura. Há a tentação da tagarelice, da revisitação dos álbuns de
família, do fluxo linguístico ininterrupto e clarividente, da aproximação à
fala quotidiana – de tornar impossível a boca bilingue. Hernández observa a
desatenção e a ineficácia comunicativa de Contreras – e, apiedando-se dele,
conhece um pouco mais da errância dos poetas.
A nudez precisa de ser esbatida
e excita mais um corpo despindo-se
do que outro sem roupa, despido. (idem, p.
22.)
A nudez não compele o movimento, não excita. Não gera expectativa nem
tão-pouco vontade de fazer. A nudez é um todo, pleno; possui, poderíamos
acrescentar, algo de totalitário. Induz passividade, entorpece o desejo.
Poderíamos concluir dizendo que a pornografia estiola o desejo.
Qualquer ruído se entranha na cabeça
mais do que um verso genial (idem, p.
33.)
Os poetas compreenderão bem este verso. É-nos dito que um verso é, desde
logo, som. Um som que até se pode diferenciar do informe ruído, mas talvez já
fosse inferir demasiado. Há quem defenda que o objectivo de toda a poesia é chegar ao grunhido animal. Um automóvel, um trovão, a chuva, o zum-zum dos
vizinhos – ruídos que se entranham. Porque nos perturbam, nos ameaçam, se
repetem. Até certo ponto, para muitos crentes, uma oração pode bem ser um
ruído, isto é, um conjunto informe de sons. Entranha-se portanto o ruído que ameaça
ou que salve. Talvez a poesia que se entranha seja justamente aquela que ameaça
ou salve. Todavia – um verso não é um trovão que possa matar e quem está vivo e
sofre sabe-o bem. E, para acabar com o desespero, para salvar, já existem as
orações, conjunto de sons especializado há milénios na tarefa. A poesia pode
ser como uma oração ou/e como um trovão.
[Também publicado n' o melhor amigo]
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