21.7.13

Pedra, palavra, prece


«Uma arquitectura frágil» (p. 7), disse Manuel de Freitas no prefácio a Tudo isto para falar da noite de Emanuel Jorge Botelho. As palavras parecem cair no poema com leveza depois do olhar demorado do poeta sobre o mundo. Sobre a pedra, como sucede nos primeiros poemas. Apesar de imóvel, vem ela a ser o centro de um micro-cosmos onde se abrigam luz, limos, erva. «Templo és sempre» (p. 11): da pedra promana uma aprendizagem da renúncia e da fuga ao aturdimento provocado pelo ruído que tudo preenche e pelo nosso movimento rumo ao vazio. Para o poeta, é uma casa sagrada a pedra, cuja imobilidade é de certa forma homóloga do cessar da actividade que escrever implica.

Escrever é um acto, é uma escolha, gera um confronto com o vazio. Os significantes são puros negativos, estão no lugar das coisas, separam-nos do mundo. A linguagem, ao converter-nos em entidades lógicas, esvazia o real da sua substância. Toda a poesia só se pode jogar neste plano fantasmático: é isso o simbólico. A poesia é feita de palavras, lembra Mallarmé. É com esses vazios que o poeta lida. É por tudo isto que considero particularmente pregnante um poema de Emanuel Jorge Botelho sobre a escrita:

sei que mato as palavras quando escrevo
ditas as coisas fica o outro
lado do dito a face primeira a primeira lágrima talvez tudo
no mesmo sítio que o texto tentou redescobrir só que as palavras
ficam, ditos os sítios ficam no nada das palavras e o poema
morre no momento da página moribunda no seu branco é assim
que ele se faz se desfaz, melhor, entregue
ao garrote do seu dizer célere a querer estar
para sempre lido nos memoriais do instante de cada um de mim
liberto e preso no momento
em que deposito nomes na página nada fica, ficam os sítios ditos
sempre sítios
descobertos pelo poeta de repente mas sempre os sítios que ficam
o poeta sabe
e sobe pela morte dos nomes acima vai em busca dos lugares
sitiados amortalha –
– se morte é escrever que é o para quê do fugir do texto
sempre (?) a dar-se à partida – morto o sítio
primeiro a que o poeta descer quer    fica
o sítio morrem os nomes (pp. 21-22)

O poema é um lugar semântico ameaçado. Derrida dizia que todo o poema, para sê-lo verdadeiramente, teria que correr o risco de não fazer sentido – e sem esse risco ele não é nada. Enuncia este poema uma distância entre o que é dito e o que dele fica. À semelhança do peixe da teoria das cores herbertiana, a palavra ganha constantemente inesperados sentidos, imitando o devir a que o poeta está sujeito. Torna-se mais difícil inscrever uma identidade que nunca se encontra mas que o poema ajuda a procurar. Nunca é propriamente superado o vazio da página em branco. Parece que a poesia consiste em atirar nomes para cima de um sítio que resiste a fixar-se. Quando muito gera o poema um sítio, um lugar branco. Esse sítio a que o poeta quer descer é tanto o poema como o próprio poeta. Tanto um como outro são inomináveis por se submeterem a constante devir. Nem mesmo um dizer célere, que diminuísse a distância entre pensamento e palavra, passando por cima da consciência, conseguirá tornar sólido o que por natureza é fluido. Nessa sofreguidão de dizer celeremente, o poema avança aos solavancos, gagueja. Como consequência, do poeta obtemos um retrato que, por efeito do movimento, se rarefaz até ser branco, até nada ser.
O poema será, assim, criação de um sítio vazio. Contudo, criação. Já à pintura de Urbano está reservado pelo amigo um criaccionismo bem mais poderoso: acrescentar referentes ao mundo. A pintura de Urbano repete o gesto de Deus, cerzindo a ferida do nada. Na poesia de Botelho, esta ferida apenas se fecha ocasionalmente, precariamente: só em alguns momentos eu e mundo parecem coincidir. A arquitectura da asa, dos limos, da lisura, do brilho é frágil. Comparecem estes momentos como suaves epifanias em que o acesso à porta do ser é pleno, em que as coisas são presentes, íntimas (breve paráfrase de «Chaves», poema incluído em A porta de Duchamp, de Rosa Maria Martelo). Estes poemas, tal como a cor de Urbano, podem ser a «prece lavada / do silêncio do mundo». Como a prece, pode o poema apenas ocorrer com a certeza suspensa. Quem reza reconhece-se limitado. O poema diz-se ser muito pouco, embora lavado, limpo, do silêncio do mundo, do negativo ontológico que o mundo é. Creio ser isto mais válido para a pintura de Urbano do que para a poesia de Botelho. Naquela, a limpidez do mundo criado, todo ele artístico, substitui-se à impureza do mundo empírico; na poesia de Emanuel Jorge Botelho, a ferida ocorre fechar-se, mas o silêncio infiltra-se de forma insidiosa.

VIGÍLIAS DO TERCEIRO DIA
(PARA O URBANO)

                                                          Meu Deus, como compreendo a tua hora.
                                                          quando tu, para que ela no espaço se arredondasse,
                                                          a voz à tua frente colocaste outrora;
                                                          para ti o nada era como uma ferida que não sarasse
                                                          e tu refrescaste-a com o mundo.
                                                         
RAINER MARIA RILKE
[tradução de Maria Teresa Dias Furtado]


quantos dias teus
estiveram de pousio,
no que foi o terceiro
dia de deus?

quantas sementes
colocaste de infusão
dentro do silo
onde se guarda o tempo?
a quantas árvores
deste o nome da terra?

quantas vezes a cor foi,
na tua mão,
a prece lavada
do silêncio do mundo?

o lume dos regressos,
esse estrondo de pétala
que põe claridade
na cinza do brilho,
esteve, sempre, dentro
dos teus olhos.

dizer da criação,
nunca te foi estranho,
como nenhum segredo branco
de uma ferida de luz.

que idade tinhas
quando a primeira árvore
te disse para subires?
(pp. 38-40)






Sugestão cinematográfica (a procura da temperatura certa, entre nós e nós, entre nós e os outros, entre nós e o mundo):







Também no melhor amigo.


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