2.12.25

Cães num presépio

Até que ponto acha que a sua experiência familiar e pessoal ajuda a compreender o que se passa hoje em dia?

Esta não é uma autobiografia convencional. Os três mundos do título são o Iraque, onde vivi até aos 5 anos; Israel, onde vivi dos 5 aos 15; e Inglaterra, onde estudei dos 15 aos 18. O livro tenta entrelaçar uma história familiar com uma história mais ampla — a da comunidade judaica no Iraque na primeira metade do século XX. Gosto de pensar nele como uma autobiografia impessoal — o que, claro, é uma contradição nos termos. Mas há certos temas subjacentes. O sionismo era um movimento de judeus europeus para judeus europeus. Um dia perguntei à minha mãe — que falava sempre dos maravilhosos amigos muçulmanos que tínhamos em Bagdade — se tínhamos algum amigo sionista. Ela olhou para mim como se fosse uma pergunta bizarra. E disse: “Não, não, o sionismo é uma coisa asquenaze. Não tem nada a ver connosco.” Essa visão era bastante representativa, típica da maioria dos judeus no Iraque. Estavam lá há dois milénios e meio, quase mil anos antes do surgimento do Islão. Além disso, os líderes sionistas não tinham interesse nos judeus das terras árabes. Tinham uma visão eurocêntrica. Olhavam de cima para os árabes e também para os judeus árabes, como a minha família — apenas um pouco menos “primitivos” do que os outros árabes.

[...]

Até que ponto acha que o racismo esteve por detrás de tudo isto em 1917 e ainda hoje?

O racismo está no ADN das potências coloniais. Arthur Balfour, o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, era na verdade um antissemita. Aprovou a Lei dos Estrangeiros de 1905, a primeira legislação anti-imigração na Grã-Bretanha, destinada a impedir que judeus perseguidos na Europa de Leste viessem para o país. Os antissemitas apoiavam o sionismo — a cria­ção de um Estado judaico — precisamente porque não queriam judeus nos seus próprios países. As potências coloniais viam os povos nativos como primitivos, inferiores e atrasados, mas os judeus num nível de civilização superior. Em 1937, Winston Churchill comparou os árabes locais, os nativos, a cães num presépio, dizendo que o facto de o cão ter estado deitado no presépio durante muitos anos não lhe dava direito a ele. Acrescentou que os árabes deviam dar lugar a outra raça, uma raça mais experiente e superior — os judeus. É um exemplo extremo do racismo britânico.

“Israel é um Estado de supremacia judaica”: entrevista ao historiador Avi Shlaim por Luís Faria, Expresso, 27.11.2025

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