História natural
Vi um cigano ser quase atropelado por um táxi
E crescer de navalha aberta para o taxista
Num ímpeto espontâneo que tem decerto mola
Em ser há séculos nesse dia um cigano objectivado.
Um polícia parou tudo apontando a arma para o ar
E o tumulto aquietou-se e as mulheres e o rapazio
Do alvoroço dispersaram e ficaram apenas uns cães
Na lama entre as casas iguais — uns cães iguais —
A ladrar ao vácuo ou a umas coisas (que coisas
Não sei, mas poucas) que terão restado a céu aberto
E abandonadas do interesse.
Chovia fino e a chuva que caía já lá estava.
Vinha de trás (como se diz) e também vinha de trás
Esta minha falta de vocação para ser cigano
Ou para ser preto quando havia escravatura e se lançavam pretos
A monte no porão, e metade morria a passar o Atlântico
E a outra metade era chicoteada e espalhada sem família
A bem da obediência e ria sapateados e era Uncle Tom
E cantava espirituais outra vez a bem da obediência.
Esta falta de vocação para ser judeu e ser coado do fumo,
Peneirados os ossos, a gordura, os chumbos e os ouros,
Vem também, com a chuva que vem de trás, contemplar
Os cães que ladram e abanam o rabo ou os cães
Que deitam a cabeça nas patas, aí onde não falta ser
E tal abundância importa pouco.
É possível fazer tudo a um homem, os homens podem fazer
Tudo a homens outros, chova ou faça sol, e o arame farpado,
Inventado para conter as vacas nas pradarias do Oeste(Então já menos selvagem), foi logo a seguir usado
Em Cuba para conter os vencidos e pelos ingleses
Contra os boers vencidos, e não duvido que lá
Houvesse lama e terra e ao menos um cão numa relação
De intimidade e indiferença com um osso.
De resto, os homens são fáceis a juntar-se contra algum homem,
E pode ser um desses que, como eu, não sentem vocação e
São os mais fracos, pois os homens podem juntar-se
Contra algum homem que não é nenhum homem
Como sete cães a um osso.
Não tenho vocação para ser homem, para ser Homo
Sapiens Academicus, Homem Cigano, Homem Judeu ou
Homem Preto, Homem Cão do Homem, e teria
Sido decerto o homem omitido por algum bem maior
Ou bem nenhum (ou bem só de pertencer ao rebanho humano)
Que batesse, humilhasse e matasse — ou batido,
Humilhado e morto, rindo o meu sapateado
E desatendido dos que a quatro patas se estão roendo
Até a uma certeza de ser (e o nada correspondente),
Que rodam como chacais no mundo ralo ou pousam
A cabeça entre as patas como leões, sendo cães,
Pois os cães continuam a vida deles
E a vida continua nesses cães.
«Escrevia o poeta, se bem se lembrava, que os cães continuavam a vida deles. Ele continuava a sua.» Donna Leon, Na Senda do Crime, p. 213.
Américo Lindeza Diogo, Pássaros que fazem zimzum. Tracção do nada
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