1.6.24

Stasi: amor, castigo, dor, lealdade


Depois destas descrições do dachsund Kroki e do chow-chow Lobo, os quais, por razões diametralmente opostas, não se ligaram de forma duradoura a um ser humano, traçarei, como terceiro exemplo de personalidade canina, o carácter da minha cadela Stasi. Na sua relação com o dono combinavam-se de forma feliz a profunda dependência juvenil da sua bisavó, Tito, e uma lealdade exclusiva dedicada ao líder da alcateia, herança dos seus antepassados de sangue lupino.
Stasi nasceu na nossa casa no início da Primavera de 1940, e tinha sete meses quando eu a adoptei como minha e comecei a ensiná-la. Na sua aparência externa, bem como no seu temperamento, os caracteres de lobo-de-alsácia e do chow-chow encontravam-se mesclados dum modo particularmente favorável. Com o seu focinho afilado semelhante ao dum lobo, a face larga, os olhos oblíquos, as orelhas curtas e peludas, a sua pequena cauda felpuda, e, acima de tudo, com os seus movimentos maravilhosamente elásticos e elegantes, ela fazia lembrar, mais do que qualquer outra coisa, um pequeno lobo fêmea; só o vermelho chamejante com reflexos dourados da sua pelagem traía, quase literalmente, o seu sangue aureus. Mas o verdadeiro ouro estava no seu carácter. Stasi aprendeu os rudimentos da educação canina, isto é, andar de trela, caminhar ao meu lado e deitar-se no chão, de forma assombrosamente rápida. Dado que ela compreendeu desde cedo, de forma mais ou menos espontânea, que lhe era vedado fazer as necessidades dentro de casa e atacar as aves de capoeira, não foi necessário incutir-lhe esses ensinamentos.
Ao cabo de dois curtos meses, a minha ligação com aquele animal foi quebrada pela força do destino. Foi-me oferecido o lugar de professor de psicologia na Universidade de Königsberg, e eu abandonei a minha família, a minha casa e os meus cães no dia 2 de Setembro de 1940. Quando regressei para umas curtas férias por ocasião do Natal, Stasi saudou-me de forma efusiva, demonstrando que o seu grande amor por mim não esmorecera. Ela conseguiu fazer tudo o que eu lhe ensinara tão bem como antes, e era de facto, sem tirar nem pôr, exactamente o mesmo cão que eu deixara havia quatro meses. Porém, assim que eu comecei a preparar-me para partir de novo, tiveram lugar cenas trágicas. Muitos amantes de cães sabem aquilo a que me refiro. Mesmo antes de eu fazer as malas – o sinal visível da partida – a cadela começou a ficar visivelmente deprimida, e recusava-se a sair de ao pé de mim, nem que fosse por um instante. Cada vez que eu saía da divisão onde me encontrava, ela erguia-se dum salto e seguia-me com uma prontidão nervosa, chegando a acompanhar-me à casa de banho. Quando as malas ficaram prontas e a minha partida se tornou iminente, a infelicidade da pobre Stasi converteu-se em desespero, quase em neurose. Recusava-se a comer e a sua respiração tornou-se anormal, arquejante e pontuada de quando em vez por grandes suspiros. Antes da minha partida, decidimos fechá-la, de forma a evitar que ela fizesse uma tentativa violenta para seguir-me. Mas agora, estranhamente, a cadelinha, que durante dias e dias não se afastara de mim mais do que alguns metros, refugiou-se no jardim e não vinha ao meu encontro quando eu a chamava. O mais obediente dos cães tornara-se insubordinado, e todos os nossos esforços para apanhá-la revelaram-se infrutíferos. Quando, por fim, acompanhado pelo habitual séquito de crianças e levando comigo um carrinho de mão cheio com a minha bagagem, me dirigi à estação, um cão de aparência estranha, de cauda descaída, pêlos do pescoço eriçados e olhos chamejantes, seguiu-nos a uma distância de vinte metros. Junto à estação, fiz um último esforço para apanhá-la, mas sem sucesso. Mesmo quando eu subi para o comboio, ela manteve a pose desafiadora dum cão rebelde, de orelhas baixas e crina eriçada, observando-me com um ar desconfiado a uma distância segura. O comboio começou a abandonar a estação, e a cadela permaneceu imóvel no mesmo sítio. Mas quando a composição acelerou, ela lançou-se subitamente para diante, correndo ao lado do comboio, e saltou para cima deste, três carruagens à frente daquela em cuja plataforma eu me postara, de forma a evitar que ela fizesse precisamente isso. (Nos comboios regionais austríacos, há uma plataforma bastante espaçosa em ambos os extremos de cada carruagem.) Eu corri ao seu encontro, agarrei-a pela pele do cachaço e do lombo e atirei-a para fora do comboio, que já atingira uma velocidade relativamente elevada. Num movimento ágil, ela aterrou sobre as quatro patas, sem cair. Abandonando a sua atitude de desafio, com as orelhas erguidas e a cabeça inclinada para um dos lados, observou o comboio até este desaparecer na distância.
Chegado a Königsberg, em breve recebi notícias perturbantes acerca da Stasi. Além de ter morto uma série de galinhas dos nossos vizinhos, vagueava agitadamente pelos campos, recomeçara a fazer as necessidades em casa e recusava-se a obedecer fosse a quem fosse. A sua única utilidade era agora enquanto cão de guarda, pois estava a tornar-se cada vez mais feroz. Depois de ter cometido uma longa lista de crimes – várias mortandades de galinhas, a invasão duma coelheira, seguida de grande derramamento de sangue, e finalmente o estraçalhar das calças do carteiro – foi rebaixada ao estatuto de cão de quintal, ficando confinada ao terraço adjacente ao lado ocidental da nossa casa, onde permanecia longas horas numa solidão entristecida. Na verdade, ela só era solitária no que toca à companhia humana diz respeito, pois partilhava um vasto e elegante canil com o belo dingo do qual já falei no segundo capítulo deste livro. Desde poucos dias após o Natal até Julho, ela ficou enjaulada como um animal selvagem, na companhia dum animal selvagem.
Quando regressei a Altenberg, no final de Junho de 1941, corri de imediato ao jardim para ver Stasi. No momento em que subi as escadas de acesso ao terraço, ambos os cães se lançaram furiosamente sobre mim, tão furiosamente como só os cães privados de liberdade são capazes. Eu estaquei no topo das escadas e os cães aproximaram-se, ladrando e rosnando de forma ameaçadora, pois a direcção do vento era tal que os impedia de captar o meu cheiro. Perguntei a mim mesmo quando é que eles me reconheceriam visualmente, mas não foi isso que aconteceu. De súbito, Stasi farejou-me, e o que sucedeu então é algo que nunca esquecerei: no meio duma corrida tumultuosa, ela parou abruptamente e ficou hirta como uma estátua. A sua crina estava ainda eriçada, a cauda descaída e as orelhas coladas à cabeça, mas as suas narinas tinham-se dilatado ao máximo, inalando avidamente a mensagem transportada pelo vento. Em seguida, os pêlos do pescoço baixaram, um calafrio percorreu-lhe o corpo e ela arrebitou as orelhas. Julguei que ela ia lançar-se sobre mim numa explosão de alegria, mas não. O sofrimento mental, que fora tão intenso ao ponto de alterar toda a personalidade daquele cão, fazendo aquela criatura, mais dócil entre todas, esquecer as maneiras, a lei e a ordem durante meses, não podia desvanecer-se num segundo. As suas patas traseiras dobraram-se, o seu focinho dirigiu-se para o céu, algo aconteceu na sua garganta, e nesse instante a tortura mental de meses a fio encontrou um escape nos acordes arrepiantes, ainda que belíssimos, dum uivo de lobo. Durante muito tempo, talvez meio minuto, ela uivou, e em seguida, como um relâmpago, caiu sobre mim. Vi-me envolto num turbilhão de esfuziante alegria canina. Ela saltou-me para cima dos ombros, quase rasgando as roupas que trazia vestidas, ela – a aristocrática, a contida, cuja saudação consistia normalmente em algumas sóbrias sacudidelas de cauda, cuja demonstração mais exuberante de afecto era pousar-me a cabeça num joelho, ela, a silenciosa – apitou na sua excitação como uma locomotiva, e lançou brados estridentes, ainda mais sonoros do que os seus uivos de alguns segundos antes. Depois, repentinamente, estas manifestações cessaram, e ela correu em direcção à porta, junto à qual parou, suplicando para que eu a deixasse sair. Para ela, era evidente que, com o meu regresso, o seu cativeiro chegara ao fim, e o curso normal das coisas iria ser retomado. Felizardo animal, invejável robustez do sistema nervoso! Um trauma mental cuja causa é removida não deixa nos animais sequelas que não possam ser saradas com um uivo de trinta segundos de duração e uma dança festiva de minuto e meio, sendo assim apagado de forma tão completa que a criatura pode regressar de imediato à sua condição normal.
Ao ver-me aproximar da casa com Stasi a meu lado, a minha mulher gritou: «Santo Deus, as galinhas!» Mas Stasi não lançou sequer um olhar às galinhas. Ao cair da noite, quando eu a trouxe para dentro de casa, a minha mulher avisou-me que a cadela já não era «asseada». Mas também nesse aspecto Stasi se comportou exemplarmente, como antes da minha partida. Ela era ainda capaz de fazer tudo o que eu lhe ensinara, e era ainda a mesma cadela que os meus dois escassos meses de adestramento tinham moldado. Ao longo de nove meses da mais profunda tristeza que alguma vez pode vitimar um cão, ela conservara fielmente tudo o que me devia. Seguiram-se para Stasi semanas da mais intensa alegria. Durante essas férias de Verão, ela foi a minha companheira inseparável, e quase todos os dias dávamos longos passeios nas margens do Danúbio, onde muitas vezes nos banhámos. Mas mesmo as melhores férias chegam ao fim, e quando chegou o momento de fazer as malas, a tragédia que referi atrás ameaçava repetir-se. Stasi tornou-se apática e triste, e não saía de perto de mim. Desta vez, o facto inegável de que um cão não compreende o significado das palavras em si mesmas custou ao pobre animal dias e dias de sofrimento. Eu decidira levá-la comigo, mas era-me impossível dizer-lho; embora eu lhe garantisse constantemente que não a deixaria ficar, o seu estado de nervosismo mantinha-se e ela recusava-se a perder-me de vista. Por fim, consegui fazê-la entender. Pouco antes da minha partida, a cadela voltou a refugiar-se no jardim, obviamente com intenções idênticas às da vez anterior. Eu deixei-a em paz até estar pronto para sair, e nessa altura chamei-a com o mesmo tom de voz que usava ao desafiá-la para um passeio. Foi então que ela subitamente compreendeu, e dançou à minha volta numa verdadeira orgia de alívio.
Stasi só pôde permanecer junto do dono durante alguns meses, dado que, em 10 de outubro de 1941, eu fui convocado para o serviço militar. A mesma separação trágica teve lugar, com a única diferença que desta vez Stasi fugiu, tornou-se totalmente independente, e, ao longo de dois meses, levou uma vida de animal selvagem na cidade de Königsberg e arredores, perpetrando crime após crime. Não tenho a mais pequena dúvida que ela era a misteriosa «raposa» que saqueou as coelheiras dum vereador da câmara que morava na Caecillian Allee. Depois do Natal, terrivelmente magra e com os olhos e o nariz purulentos, Stasi regressou a casa, onde a minha mulher a tratou até ela recuperar a saúde. Mas era impossível mantê-la em casa, pelo que ela foi enviada para o jardim zoológico de Königsberg, onde partilhou a jaula do grande lobo siberiano que se tornou seu marido. Infelizmente, tratou-se de um casamento sem filhos. Meses mais tarde, quando trabalhava como neurologista no hospital militar de Posen, levei Stasi para viver de novo comigo. Em Junho de 1944, ao ser enviado para a frente de batalha, mandei Stasi e os seus seis filhos para o jardim zoológico de Schönbrunn, em Viena, onde, perto do final da guerra, ela foi morta durante um bombardeamento aéreo. No entanto, um dos nossos vizinhos de Altenberg comprara um filho de Stasi, e é dele que descendem todos os cães que possuímos actualmente. Stasi passou um pouco menos de metade dos seus seis anos de vida na companhia do dono, mas, ainda assim, foi o cão mais fiel que alguma vez conheci – e devo dizer que já conheci um número incontável de cães.

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