2.6.24

Roy Andersson, Tavares, Michaux, humor e cinismo

4.
Uma frase de Nietzsche, um dos martelos verbais mais implacáveis da história do pensamento, com o cinismo e a potência que o caracterizavam: “Um político divide os seres humanos em duas classes: instrumentos e inimigos.”
De que são feitas as frases cínicas? Muitas vezes de um poder corrosivo que pode não ser justo, mas nunca perde a violência. O cinismo é em parte isso: não quer argumentar, prefere destruir. A sua força não vem de medir ou pesar — ações típicas do senhor equilíbrio, da senhora justiça —, a força do cinismo vem de concluir com toda a potência que tem.

5.
Alguém me enviou a ilustração de dois soldados:
“— Meu capitão, aproxima-se um batalhão.
— Amigos ou inimigos?
— Devem ser amigos, porque vêm todos juntos.”

6.
O humor e o cinismo como formas de afastamento da realidade. Modos de criar distância em relação ao trágico, maneiras de conseguir respirar debaixo de água e das notícias.

Gonçalo M. Tavares, «Batatas, estátuas, nações e cinismo», Expresso, 31.05.2024

«Em caso de perigo, põe-te a gracejar» (Henri Michaux). Se o perigo é demasiado alto, o esbracejar náufrago de desespero. Não há linguagem estruturada na vertigem do perigo. O humor e o cinismo são distância e ainda dependem dela.

Não ouvir é uma impossibilidade, considerando que não existem pálpebras para as orelhas. Ouvir é sempre mais incontrolável do que ver, apesar de tudo. Ouvimos involuntariamente, brutalmente.



Depois aquela patológica indiferença em relação à dor e ao absurdo chamada quotidiano. É nesse fundamental intervalo — grande, gigantesco — entre cada um e a sua própria vida que cresce a desesperança, sim, mas também o grande humor, o grande humor negro em modo quotidiano.

Evidentemente, há vários degraus de contágio entre o desapego cínico e a insatisfação com a realidade evidente no humor que vale a pena.



Roy Andersson, Um pombo pousou num ramo a refletir na existência (2014)

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