8.9.23

O sabor da cereja de Kiarostami, apontamentos

Pois sim, a exaustão é uma espera do inadiável. A delicadeza de não perder a sua vida. Na embriaguez universal do cepticismo, viver, ou seja, entregar-se.

É claro que seria bom não chegar a um ponto extremo do cansaço. O ponto extremo do cansaço? Não se cansar com alegria durante muito tempo.

As pequenas pausas, as horas que uma insuportável melancolia deita fora, aos cálculos das razões, à espera de uma emenda qualquer. São infinitas como qualquer morte, mas descontínuas. A morte é bem persistente, como um compartimento sem luz nem espaço.

Terra para que o homem possa viver mais cómodo. Sobre ela, o homem crê, edifica, alvoroça-se; constrói castelos e imiscui-se em pequenos troços de montanha. Agita-se muito. Planta para comer, mexe-se para ficar rico. Mas tudo de bom e de mau regressará a terra, o que demonstra qual é o elemento mais forte.

A dor do outro é impenetrável. É uma crença: acredito na dor do outro. Acredito na dor do outro com um corpo que sente. “Qual é o melhor intensificador da visão? O telescópio ou a lágrima?” – Alexander Kluge. Apesar disso, claro, a dor incompreensível pode ser resultado do esgotamento das tentativas de compreensão da dor. A dor aumenta quando não se sabe como dói, o que dói.

Os filmes de Kiarostami põem-nos a sentir a dor dos outros desde o início, ironia.

Uma personagem das Cabeças trocadas de Thomas Mann suicida-se cortando a sua cabeça com uma espada. Toda a força e vontade concentradas num acto sem hesitação. O suicídio como a nostalgia de ser completo num gesto.

Um Deus que deseja a alegria dos homens – Espinoza.

Sentir só o sabor da cereja. O fruto mais doce mesmo que não seja o mais doce. O doce é desejo de imortalidade.

Vida que não cresce num espaço exíguo. Ser enterrado vivo, um dos grandes medos infantis de Poe, grande escritor do medo. Ser enterrado em vida tem sido a grande contra-teoria da modernidade.

“Toda a intimidade se esconde. Joë Bousquet escreve: «Ninguém me vê a mudar. Mas quem me consegue ver? Eu sou o meu esconderijo»” (Bachelard).
A dor da personagem é um cofre fechado. Cada qual é um túmulo, a intimidade é a necessidade do segredo. Insondáveis como túmulos: o que nos conta o filme do sofrimento do seu protagonista? De outro lado, mostra muito, o que pode, o plano de um suicídio.

A alegria de viver de Kiarostami, o jogo: isto é só uma ficção (e evocamos La nave va de Fellini). O filme havia começado com aquelas grandes sequências entre gente da rua ao estilo documental – trabalhadores que se juntavam numa praça à espera de alguém que os levasse para um ofício qualquer – e termina com a preparação do último take. Um documentário que caminha para uma ficção e que termina, finalmente, em pó.

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