7.6.23

Virtude e corpo

O corpo virtuoso pode definir-se assim: o corpo que se esqueceu de qualquer distância a si mesmo; expressa o que sente; é o corpo que se evade de si mesmo e inventa para si um duplo maravilhoso; um corpo que esqueceu, com toda a naturalidade, a extrema contenção imposta a cada um dos seus músculos; é que nem sequer a recorda; nem sequer poderia recordar os diferentes mecanismos; todo o sistema de relações, de transmissões, deixou de ser voluntário; toda a atenção à que a alma se havia aplicado tenazmente foi sendo reabsorvida sem deixar o menor vestígio, nem no sangue nem nos ossos. Já não há uma massa, nem um peso, nem um movimento; é pura elevação. É igual ao comensal, sentado em frente da toalha branca, que já não reconhece a espinha, a forma, a escama, a crista, os chifres, a própria silhueta das carnes que está a devorar.

Quignard, O amor o mar

O sumamente interessante é que o corpo virtuoso é um movimento, é emoção, ou seja, esquecer um corpo e um rosto. É nessa virtude que o corpo pode ser pura elevação; pode devorar o exterior, diluir-se, através dessa leveza que esqueceu. E pode ainda, claro, ser virtuoso — não por via da teoria, nem da acusação, que caluniam a vida.

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