18.2.23

O sol

Pelo velho arrabalde, onde em cada tugúrio
As persianas abrigam secretas luxúrias,
Quando o sol mais cruel bate com raios vivos
Em cidades e campos, telhados e trigos,
Exercito sozinho esta absurda esgrima,
Farejando em cada canto os acasos da rima,
Tropeçando em palavras como na calçada,
Dando às vezes com versos há muito sonhados.

Este pai protector, que detesta as cloroses,
Acorda em cada campo os vermes e as rosas;
É ele que nos dissipa os problemas prò céu
E nos enche os cortiços e os cérebros de mel.
Só ele rejuvenesce os que usam muletas,
Tornando-os tão alegres como raparigas,
E ordena às colheitas para amadurecerem
No imortal coração que quer florescer!

Quando desce à cidade, tal como um poeta,
Mesmo a sorte das coisas mais vis enobrece
E entra como um rei, sem ruído e sem lacaios,
Em todos os palácios e nos hospitais.

Baudelaire, As flores do mal, trad. Fernando Pinto do Amaral


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