31.12.22

1960

Morrem em série nas estradas, a cada nova epidemia de gripe, a cada onda de calor, a cada erro de quem lhes falsifica os alimentos, a cada nova inovação técnica proveitosa para os múltiplos empresários de um cenário cujos inconvenientes são eles os primeiros a suportar. As suas penosas condições de existência levam à sua degenerescência física, intelectual, mental. Falam-lhes sempre como a crianças obedientes, a quem basta dizer «é preciso», e eles acreditam. Mas, principalmente, são tratados como crianças estúpidas, diante das quais tartamudeiam e deliram dezenas de especializações paternalistas, improvisadas na véspera, fazendo-os admitir seja o que for e dizendo-lho a trouxe-mouxe; e igualmente o contrário no dia seguinte.

Separados entre si pela perda geral de toda a linguagem adequada aos factos, perda que os impede de ter o mínimo diálogo; separados pela sua incessante concorrência, sempre instigada pelo chicote, no consumo alardeante do nada, e, por isso, separados pela inveja menos razoável e menos capaz de encontrar satisfação, estão até mesmo separados dos seus próprios filhos, ainda não há muito a única propriedade dos que nada têm. Retiram-lhes, em tenra idade, o domínio sobre os filhos, já seus rivais, que já nem dão ouvidos às informes opiniões dos pais e sorriem do seu flagrante fracasso; que desprezam, não sem razão, a sua origem e se sentem muito mais filhos do espectáculo reinante do que desses seus criados que, por acaso, os engendraram: sonham ser os mestiços desses negros. Por trás da fachada do arrebatamento simulado, nestes casais, tal como entre eles e a sua progenitura, só se trocam olhares de ódio.

Todavia, estes privilegiados trabalhadores da sociedade mercantil consumada não se parecem com os escravos no sentido em que eles próprios devem prover à sua conservação. Mais propriamente, o seu estatuto pode ser comparado com o da servidão, porque estão exclusivamente vinculados a uma empresa e ao seu bom andamento, embora sem reciprocidade a seu favor; e, sobretudo, porque ficam estritamente sujeitos a residir num espaço único: no mesmo circuito dos domicílios, escritórios, auto-estradas, férias e aeroportos sempre idênticos.

Guy Debord, in girum imus nocte et consumimur igni


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