3.5.20

Observações inconjuntas (IV)

4. «Um facto não existe sozinho»
(Uma menina está perdida no seu século à procura do pai)

Alguém passeia na rua e encontra um sapato. Não houve, nesta rua, nenhum desfile, nenhuma festa, não existe vestígio de acidente algum. O sapato não está perto de nada. Não está próximo de caixotes do lixo, nem de casas ou jardins. Como um objecto louco, sem função ou lugar.

Está no meio da rua, desamparado, sem o seu par, o par que poderia inserir o sapato perdido num conjunto, na unidade que sossegaria por momentos a turbulência no coração. Meia unidade é o desassossego.

Um sapato deverá ter um par; ou então algo perto, com o qual se possa ligar, contaminar, derivar em sentido. Mas não há nada perto, apenas um sapato. Não é possível identificar a sua origem; mas, pelo menos, haveria a possibilidade de nexo causal entre as coisas; pelo menos, esboçaríamos uma explicação.

Um verso: "O mundo tem o calor do sangue e é pessoal" (Sylvia Plath).

Um sapato no meio da rua é o assombro. 

Assim começa Uma mulher sem sorte de Richard Brautigan.

Assim é cada capítulo de Cinco meninos, cinco ratos. Um sapato sem par no meio da rua, irradiando sentido em todas as direções.


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