9.5.20

Observações inconjuntas (V)

5. Ofício: caçar a astúcia — síntese, ressalva e pensamento

Síntese

"A escrita do ensaio não quer dizer o dito" (João Barrento, O género intranquilo. Anatomia do ensaio e do fragmento).

Máximo e mínimo

O mínimo para se alcançar o máximo.

Exigir da vida o máximo; mas antes, ter exigido o mínimo.

Ou seja: deitar fora certos valores, comportamentos, despojar-se, segundo Clarice Lispector:

"com fome apenas do pouco, com fome apenas do menos" (A paixão segundo G.H.).

Clarice também chamava a isto o abandono da sentimentação — escolher o mínimo. O mínimo como o somatório dos nãos; condição da multiplicação das possibilidades.

Em Clarice, há a história de deixar para trás uma vida segundo as expectativas do social — os comportamentos da multidão: ser o centro das atenções mundanas, obter sucesso profissional, acumular honras. Isto significa que este máximo da multidão é falso e esconderia outro máximo, desta feita ético e orgânico: a alegria, o entusiasmo, através da escrita, atividade que, aos olhos do social, é o vazio, o mínimo.

Outra observação essencial, de algum modo uma deriva: "Os homens elogiam muito o que sentem. O que é tão perigoso como execrar o que se sente" (Clarice Lispector).

Elogiar muito o que se sente; o mim. Ou seja, não poder andar com a parafernália do que o Outro é suposto querer — disponibilidade para funcionar, participar acriticamente no mundano, etc. "Não é que eu queira estar pura da vaidade, mas preciso ter o campo ausente de mim para poder andar" (Clarice Lispector). Ausência para poder ser leve, andar — saltar, diria mesmo. E a delicadeza: não é que deseje a pureza pela pureza. Não é que queira ser pura, só desejo saltar. Que no meu abandono da vaidade ninguém venha a encontrar o juízo.

No passado, muitas personagens claricianas estariam um passo antes da vida: "Um passo antes de minha vida … que, por uma espécie de forte íman ao contrário, eu não transformava em vida; e também por uma vontade de ordem" (Lispector). Um passo antes da vida — a espera. E uma vontade de ordem, pois "a desordem é de mau gosto". A alegria ou a espera, o máximo ou o mínimo. Artaud também observou: "Depressa, depressa, vou desordenar a minha vida" (O suicidado da sociedade).

O máximo é, pois, "o essencial tornado urgente" (Gonçalo M. Tavares). O prazer — sendo efémero, porque somos vivos, não equivale ao fútil, nem ao coletivo, com as suas palavras de ordem. Não é o Poder (substantivo despótico), mas o poder (verbo): eu posso, tu podes, ele pode...

O desejo é o essencial, "um devir-pura energia intensiva — a que circula no corpo paradoxal, múltiplo, fechado sobre si e em comunicação com o cosmos, e que coincide com a energia da sua consciência subtil" (José Gil, Caos e ritmo). Noutro ponto do livro, José Gil fala também da "pura energia sem Forma", o instante em que o grosseiro se converte em subtil, "porque o ritmo transporta-se a si mesmo do corpo para o pensamento, transformando o corpo em pensamento".

Alegria, movimento e pensamento: "Quando é que o pensamento do movimento se torna movimento do pensamento? Quando o ritmo do corpo se torna ritmo do pensamento" (José Gil).

Entrar no individual, desfazer o mim, sentir e explorar a pluralidade por via do prazer. Abandonar o máximo —a decantação do humano — para atingir outro máximo. Recusar a caridade para finalmente ser caridoso: “A gradual deseroização de si mesmo é o verdadeiro trabalho que se labora sob o aparente trabalho, a vida é uma missão secreta” (Lispector, A paixão segundo G.H.).


Para continuar o pensamento

"A única afirmação grande de Nietzsche é que a alegria é mais profunda que a dor, que a alegria quer profunda, profunda eternidade" (Fernando Pessoa).

A eternidade é a de um desejo que cresce, que quer indefinidamente continuar. Na enunciação de Pessoa, a alegria é metafísica. Porém, se fosse atingida essa profunda eternidade, a alegria dissolver-se-ia — a sua afirmatividade desapareceria caso fosse possível ao humano experimentar indefinidamente.

Por isso, se quer continuar (diríamos paradoxalmente, atendendo à frase de Pessoa), a alegria só poderá querer a mortalidade.

Um diálogo entre S. Agostinho e Clarice Lispector, moderado por Maria Filomena Molder (Dia alegre, dia pensante, dias fatais):

— Existe entre os homens esta grande questão: o homem pode ser feliz e mortal? (De ciuitate dei)
— Amar a vida mortal, isso é a felicidade. (A descoberta do mundo)

O horizonte de um fim é a condição da alegria, ainda que possamos suspeitar de uma secreta expectativa de eternidade.

Se torcêssemos os termos da enunciação pessoana, com júbilo aceitaríamos que o desejo de uma profunda, profunda alegria é imprescindível para o mundo continuar.

Em aberto, está a hipótese de recomeçar, de jogar.

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