10.6.19

Luís Mourão (1960-2019)



A TARDE DE UM ESCRITOR *


O meu obituário termina aqui. Cada começo como o 8 sem princípio nem fim do título do poema sobre o arado de Ruy Belo, indo pela morte dentro como quem regressa, a equívoca sensação de se estar a fazer uma grande travessia quando afinal se realiza o demorado adeus da nossa condição. Estamos sempre a meio, até à última palavra que não é dita por nós. O futebol, o basquetebol, eram meios de estar no meio dos outros, como escreveu ter sido assim na sua infância. (Só um parêntese, caros leitores, isto é uma carta para longe, para a criança que inevitavelmente seremos, para a construção do mundo e do outro que é nossa escolha mortal — será isso, caro Luís?) Em momentos como este, o abandono que somos solta a mão que o agarra, corre desalmadamente como criança que sente que ninguém a entende, não a deixam em paz, porque tem medo de amar, tem medo de ser amada, tem medo que o medo a transforme.

Tentei durante o dia fazer as minhas tarefas de mortal, mas, já quase noite, não sei por que prego no coração, por que desejo absurdo, é inevitável estar frágil perante o cosmos, digo-o aludindo a um livro de Peter Sloterdijk, de que aliás o Luís teria gostado, gostou, estou certo, porque toca no fundo da deficiência congénita humana e da necessidade de acrobacia ética. É isso o modo de viver gregamente? Somos nós que, a cada instante, escolhemos, porque não é possível experimentar indefinidamente, é perigosa a arrogância da imortalidade. Escolher eticamente confere importância e peso ao existir. Citando um poema de que gostava, de Herberto Helder: “porque nada tem retôrno e tudo é dificílimo / (não só o máximo mas também o mínimo)”. É só reconhecendo o difícil ao máximo e ao mínimo que seremos sóbrios, uma linha na existência, uma linha irrequieta, grega, combativa com as manhãs.) Sem psicanalisar muito, toda a criança sente em algum momento esse abandono, como observou ao ler o último romance vergiliano, Na tua face, o outro que somos e se nos apresenta na sua deficiência, largado pela mãe, pelo amor do absoluto entrado nas brumas do mar. Este sentimento de abandono perdura pela vida e agudiza-se em certas circunstâncias quando a tragédia se torna destino e, em certos casos, bem mais violentamente, desistência. A melancolia daí proveniente é atraso em relação ao mundo, salvaguarda de alguma distância por pudor, medo, ou ainda desejo, mas melancolia que é um modo de observar o humano (e o Luís percebia rapidamente o outro) e de entender, aceitar e amar a finitude, sendo esta a tarefa para uma vida inteira, necessariamente inconclusa, mas a única hipótese da ternura, o dever de nos fazermos ao mesmo tempo que fazemos mundo.

Os trâmites dos dias eram também exercidos pelo Luís com sabedoria, olhando os outros nos olhos, não descurando os formalismos em que estarmos em sociedade exige, negociando, procurando melhorar o que é público e de todos para que nunca deixe de o ser com qualidade. Porque “tudo poder ser de todos, tudo mesmo” (lê-se no blogue Manchasdevia ser uma utopia inscrita microscopicamente nos dias, mas nem sempre o é e menos nestes dias de pão curto em reinos salgados. Sabem-no todos os que trabalharam consigo em Viana do Castelo, dedicando-se muitas horas ao bem comum. Na Escola Superior de Educação do IPCV deixa muitas histórias bonitas e engraçadas a todos os amigos, todos gostavam muito de si.

Com a doença, o Luís entendeu claramente o que já sabia, que não se pode negociar com o destino, nem se pode pedir à vida mais do que ela pode dar. Não devolveu o bilhete, há jogo até ao fim, até ao ponto que o corpo permita, assumindo até então as despesas do ataque por sua conta, risco e incerteza. (A incerteza, ingenuamente tão vilipendiada, tão detonador de irritação e metafísica, afinal é salvaguarda do desespero, da obsessão, da maldade: “A incerteza é uma conselheira sábia, pede discernimento e isso protege-nos da alucinação da nossa verdade”, como escreveu também no Manchas). Então acordava cedo e sentava-se, não antes dos gestos exactos preparando o pequeno-almoço com o cuidado que merecem as coisas pequenas (nunca menos do que merecem as grandes), levanta as persianas para que a primeira luz inunde a casa com o entusiasmo do começo não isento da névoa daquilo que ainda não tem forma. Avançava pelo desconhecido de si como quem não se quer queixar nem acusar, pois enquanto deseja não calunia a vida e esse modo exacto de agir, ver e escrever mantinha-o na realidade, recusando-se negá-la pura e simplesmente, e era ainda um modo sóbrio de cair, como o deve tentar todo aquele que se sabe mortal. E isto é bem mais fácil de dizer do que de viver — e o Luís viveu-o. O estardalhaço, o modo inexacto de pôr as coisas, é só um momento mais da mentira que muitos não desejam confrontar. Mas, ó mortal, administra a tristeza sabiamente, talvez seja essa a ciência do mortal.

Mas tudo é ridículo quando se pensa na morte. Pesem embora essa alegria calma, o Deleuze dos jogos de futebol na infância, das tardes a tentar manter o jogo equilibrado, intenso (porque um corpo é a sua potência se se torna deserto, se é tudo o que pode em sentido ético-atlético, se é concentração), na confrontação com a morte, não se evita a metafísica. Em palavras suas: experimentamos “a melancolia insuportável de que o mundo também é feito”. E então há que reconhecer o nosso abandono, abraçá-lo, cuidá-lo — eram isso os seus gestos calmos? O modo sábio, porque vivido, e alegre como não criava uma relação angustiadamente dominadora com a realidade?, atento às tantas formas de que a negação do abandono se reveste (como sucede ao possidente ou ao vaidoso). E se se levantava e escrevia, como a criança que era jogava até não haver mais tempo, era porque o que sabia não interessava tanto saber, se não viver.

Quem fará justiça ao que eram as suas comunicações?, o rigor científico e ascético com que definia o fio da sua argumentação, que depois ia sendo apurado com calma, ao ritmo de um pathos metafísico e irónico — vergiliano? — de que o Luís inolvidavelmente imbuía certas palavras e exactos silêncios?

A ética tem a oportunidade de se manifestar diante da fragilidade, escreveu Gonçalo M. Tavares. Saint-Exupéry afirmou que somos responsáveis por aqueles que cativámos. O Luís exerceu exemplarmente a ética diante de quem se mostrava frágil e esteve disponível para os muitos que cativou. E estou longe de ser o único a afirmá-lo com conhecimento de causa. A sua boa acção importava menos pela razão que a pudesse justificar, mas pelo espaço de construção e ligação que efectivamente permitia. Era afável e generoso — admiro-o muito, farei por não me esquecer do seu exemplo, para não rebaixar a existência, para que com ela possa fazer alguma coisa.

Uma das grandes felicidades da minha vida foi ter sido seu amigo e interlocutor. Faz-nos muita falta, agradeço-lhe por tudo.



* Título inicialmente previsto para a sua tese de mestrado, como o título homónimo do romance de Peter Handke.


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