23.10.18

Fantasia e corpo — filme negro

Podes estar na cidade mais aérea entre todas mas a pequenez da existência pode resultar da desmesura da fantasia. Roupas extravagantes mas não menos as exigências. Entras num domínio técnico por força da inteligência, a fantasia convence-te de que não estás à altura. E a vaidade, claro, de não correspondência com o mortal. Que fazer com esse instinto — resvalas, até onde? Uma civilização tão extensa e bela na cabeça. 

Elaboras com a minúcia que a inteligência permite os meios por que deves sofrer. Quem não merece severamente ser castigado por não ser mais do que humano? Um erro pode ser bem melhor do que uma emenda, ou menos mau que ela; talvez nunca chegue o erro à terribilidade da emenda. Desesperadamente esquecer de que se está sempre perto do abismo.

Da teoria à brutalidade vai uma distância, que o homem experimentou — melhor teria sido deixar a fantasia no papel. Que juvenil pode ser a paixão pela erudição! O juiz, as vozes, não se calam e como és competente quem poderia suspeitar. Etéreo como música, jaz o corpo sepultado debaixo de um piano, suspirando por tudo o que continua a faltar. Como se aprende, o amor, que página de que manual detalha a sua técnica, supondo que mereceria ter nascido e que o meu corpo ainda será capaz de afecto? Em que faca sem cabo a que falta a lâmina se encontrará, agora, a morte?



Isabelle Huppert, Fotograma de A pianista de Michael Haneke (2001)


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