“Sono un gran bugiardo” declara Fellini no filme com o mesmo título. Na sua infância e na sua terra os artistas eram vistos como criaturas excêntricas, inadaptadas, vagabundas, canalhas. E assim os continua a ver, acentuando o instinto da rebelião. Ele sabe que é um combatente que tem medo e que sem medo não poderia defender-se e vencer, saltar para fora da arena. Mas a rebelião não é solteira, vive paredes meias com um gesto artesanal que se chama magia.
Quando lhe acontece ver um filme dele, coisa raríssima, pergunta sempre: “Ma chi è che a fatto questo?” Nas primeiras semanas, é ele a guiar o filme, nas semanas seguintes é o filme a guiá-lo a ele. O filme engendra o seu próprio tempo, passa de uma simultaneidade para outra, a série domesticada (primeiro, segundo, terceiro...) foi deixada de lado. Nele habita um obscuro habitante, “com quem convivo, mas que não conheço”, um sem nome que o faz seduzir, plagiar tudo o que vê e ouve, aquele que lhe dá autoridade, que o torna autor.
Claro que para Fellini isto nada tem a ver com improvisação nem com a liberdade sem limites (uma forma de superstição que se engana a si própria), mas com a espontaneidade, eis o segredo da arte e também o da vida (Leibniz diz que a liberdade é a espontaneidade do espírito, cf. Couturat). Sem arte só haveria a vida pura, um coração que bate, um estômago que digere, pulmões que respiram... diz ele, embora, essa vida pura, irreconhecível, penetre em todos os poros da arte: um coração que bate, um estômago que digere, uns pulmões que respiram: pulsação, mortificação ácida e regeneradora, sopro.
Eis o primeiro princípio: enterrar tudo o que jaz morto em nós, e a disposição-chave: estar “in attesa”. Quando não filma, sente-se um exilado, impreparado para a existência (Chillida diz que é um fora-da-lei, Clarice Lispector diz que está morta. E depois há os que já estão a morrer, já enquanto ainda escrevem). Por outras palavras, o exílio é queimado em praça pública.
Maria Filomena Molder, Dia alegre, dia pensante, dias fatais
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