27.6.18

Quando formos transporte, uma hipótese

DEPOIS DA MINHA MORTE

Fui transportado depois da minha morte, fui transportado, não a um lugar fechado, mas à imensidade do vazio etéreo. Longe de me deixar abater por essa imensa abertura em todos os sentidos e a perder de vista, em céu estrelado, congreguei-me e congreguei tudo o que eu tinha sido, e o que estivera quase a ser, e em suma tudo aquilo que no calendário secreto de mim mesmo me tinha proposto ser, e apertando tudo, e também as minhas qualidades, e por fim os meus vícios, derradeiro escudo, fiz de tudo a minha capa e arreio.
Sobre este caroço, animado pela ira, mas uma ira clara que o sangue já não sustinha, uma ira fria e integral, pus-me a fazer de porco-espinho, em suprema defesa, numa última recusa.
E então o vazio, as larvas do vazio que já cresciam tentacularmente para mim com os seus bolsos moles, ameaçando-me com a abjecta endosmose, essas larvas espantadas, após uns vãos tentames contra a presa que recusava render-se, recuaram embaraçadas e deixei de as ver, abandonando à vida aquele que tanto a merecia.
Doravante livre deste ponto, empreguei a minha força do momento, a exaltação da vitória inesperada, para pesar em direcção à Terra, e voltei a penetrar o meu corpo imóvel, que os lençóis e a lã felizmente não tinham deixado arrefecer.
Com surpresa, após este meu esforço ultrapassando o dos gigantes, com surpresa e alegria misturada em decepção, voltei a entrar nos horizontes estreitos e cerrados onde a vida humana, para ser o que é, tem de passar-se.

Henri Michaux, O retiro pelo risco (antologia)


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