Dê-me um lugar, disse ela. O meu primeiro impulso foi ir-me embora, mas a fadiga e o não saber para onde ir, impediram-me de o seguir. Encolhi portanto um pouco os pés para debaixo do corpo e ela sentou-se. Não se passou nada entre nós nessa noite, e depressa se foi embora, sem me ter dirigido palavra. Limitara-se a cantar, como se fosse só para si, e sem as palavras, felizmente, algumas velhas canções populares, de uma forma curiosamente fragmentária, saltando de uma para outra, e voltando à que tinha acabado de interromper antes de haver concluído a seguinte. Tinha uma voz falsa mas agradável. Pressentia uma dessas almas que se aborrecem depressa e nunca concluem nada, que são de todas talvez as menos chatas. Mesmo em relação ao banco, depressa se tinha fartado, e no que toca a mim tinha-lhe bastado uma olhadela. Era na realidade uma mulher extremamente tenaz. Voltou no dia seguinte e no dia seguinte a esse e as coisas passaram-se mais ou menos da mesma maneira. Trocaram-se talvez algumas palavras. No dia seguinte chovia e pensei que ia ficar sossegado, mas enganava-me. Perguntei-lhe se fazia parte dos seus projectos vir incomodar-me todas as noites. Incomodo-o? disse ela. Devia estar a olhar para mim. Não devia ver grande coisa. Talvez duas pálpebras e um pouco de nariz e de testa, mas mal, por causa do escuro. Pensei que estávamos bem, disse ela. Você incomoda-me, disse eu, não posso deitar-me ao comprido quando você aí está. Falava dentro da gola do sobretudo mas ela mesmo assim ouvia-me. É assim tão importante para si deitar-se ao comprido? disse ela. É no que dá dirigir a palavra às pessoas. O que tem a fazer é assentar os pés nos meus joelhos, disse ela. Não me fiz rogado. Sentia por baixo das minhas pobres barrigas das pernas as suas coxas roliças. Pôs a acariciar os meus tornozelos. E se lhe desse com o tacão na cona, pensei. Fala-se às pessoas em estar deitado e elas vêem imediatamente um corpo estendido. O que a mim, rei sem súbditos, me interessava, essa coisa de que a disposição da minha carcassa era apenas o mais longínquo e fútil dos reflexos, era a supinação cerebral, a atenuação da ideia do eu e da ideia desse pequeno resíduo de ninharias peçonhentas que apelidam de não-eu e até, por preguiça, de mundo. Mas aos vinte e cinco anos o homem moderno ainda se entesa, fisicamente também, de tempos a tempos, é a sorte de cada um, eu próprio não lhe andava a correr atrás, se é que a isso se pode chamar entesar. Ela naturalmente apercebeu-se, as mulheres farejam um falo no ar a mais de dez quilómetros de distância e perguntam-se, Como é que esse conseguiu ver-me? Deixamos de ser nós próprios, nessas condições, e é penoso já não sermos nós próprios, mais ainda do que sê-lo, diga-se lá o que se disser. Porque quando o somos sabemos o que temos a fazer, para o ser menos, enquanto que quando já o não somos passamos a ser qualquer um, não há já processo de nos ocultarmos. Aquilo a que se chama amor é o exílio, com um postal da terra de vez em quando, é o meu sentimento nesta noite. Quando ela acabou e o meu eu, amansado, se reconstituiu com a ajuda de uma breve inconsciência, encontrei-me só.
Samuel Beckett, O primeiro amor
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