Clarice obriga-nos a parar em cada frase, uma e outra vez
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— E então você não quis mais nada disso. E parou com a possibilidade
de dor, o que nunca se faz impunemente. Apenas parou e nada encontrou
além disso. Eu não digo que eu tenha muito, mas tenho ainda a procura
intensa e uma esperança violenta. Não esta sua voz baixa e doce. E eu
não choro, se for preciso um dia eu grito, Lóri. Estou em plena luta e
muito mais perto do que se chama de pobre vitória humana do que você,
mas é vitória. Eu já poderia ter você com o meu corpo e minha alma.
Esperarei nem que sejam anos que você também tenha corpo-alma para amar.
Nós ainda somos moços, podemos perder algum tempo sem perder a vida
inteira. Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de
nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado,
acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque
não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por
não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que já não tenha
sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora
pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam
armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o
começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos
diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado
associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos
procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos
envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não
termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de
tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte
para tornar nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber
como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa
indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos
disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca
falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é
considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez
de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e
ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos
dizer “pelo menos não fui tolo” e assim não ficarmos perplexos antes de
apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando
ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos
temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória
nossa de cada dia. Mas eu escapei disso, Lóri, escapei com a ferocidade
com que se escapa da peste, Lóri, e esperarei até você também estar
mais pronta.
Clarice Lispector, Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres
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