11.12.15

Leituras à sexta

Há dias assim (muitos, de resto, pois o Ípsilon tem sido, infelizmente, pouco mais volumoso que o caderno de Serralves que por vezes incorpora).


1. António Guerreiro discorre sobre o efeito anestesiante da cultura. (Já há umas semanas discorreu sobre Umberto Eco, cuja análise semiótica da arte de massas contribuiu para uma quase indistinção entre high brow e low brow. O desígnio dos Estudos Culturais, dizendo-o rápido, era dessacralizar a arte, como que vertendo-a no mundo social.) A cultura de um povo vai desde a sua língua aos chocalhos, passando pela aguardente e pelos sonetos de Antero de Quental. Tal entendimento elástico da cultura torna difícil a acção política de um ministério. E, pior, pode criar a ilusão de que ouvir Tony Carreira é tão importante - e tão formativo - como ouvir Brahms. Mas o reverso também não é verdadeiro. Obras como as de Nabokov revelam-nos como a busca privada da bem-aventurança estética produz crueldade. Não obstante, há livros que nos tornam mais autónomos e outros que nos tornam menos cruéis (como assinalou o liberal Richard Rorty). Aquela homogeneização, de certa forma legitimidora da indústria de massas, raramente tornou acessível cultura que contribuísse para a criação de pessoas mais autónomas e menos cruéis. Deixa tudo na mesma - tem um efeito anestesiante, entediante, embrutecedor, alienante. Estimula a nossa parte mais receptiva. Ou melhor, deixa quase tudo na mesma: aumenta o poderio financeiro e político da própria indústria.
Em jeito de contra-argumento, lembremos que Marshall McLuhan considera que a tecnologia tem um efeito narcótico, obviando – como o fazem outros narcóticos, como a droga, o álcool ou a religião – as experiências traumáticas. Para além disso, o autor considera que a origem da palavra “Narciso” reside precisamente no termo grego narcosis, que significa entorpecimento. Narciso estaria, desta forma, entorpecido pela sua imagem, por uma extensão de si próprio (constatação que aproxima Narciso de Pigmalião). A tecnologia - entre as quais, o livro - cose as nossas feridas narcísicas. Qualquer livro, de qualquer autor, tem, portanto, uma função anestesiante. Tal como uma caneta, um Ipad, ou um computador. E, para além de ter este efeito, pode ser formativo ou não.

2. Confesso que gostei de Le conseguenze dell'amore de Paolo Sorrentino. Havia um estilo provocador, algumas frases assertivas, um protagonista estranho. Julgava um bom diagnóstico do niilismo: de como a transcendência foi ocupado pelo dinheiro, de como nos fascina a previsibilidade das máquinas. Agora que penso melhor, talvez o estilo provocador fosse encenado, as frases assertivas estivessem por vezes perto do bombástico, o protagonista fosse estranho porque isso é cool. É possível. Mas também é possível que Le conseguenze dell'amore estivesse no limite do grotesco, quase no sensacionalismo, e que o cineasta tenha franqueado esse limite, para fazer parte do espectáculo niilista que diz acusar. Sendo assim, não, obrigado.




Sem comentários:

Enviar um comentário