28.6.15

O indomesticável Herberto Helder e o crítico refastelado no cânone


Lá vem a bicicleta do crítico desde o símbolo, por um dia de verão exemplar. De cânone às costas e bico no ar, o crítico pernalta dá à pata nos pedais. E é isto, quase sempre isto: o poeta morre, a poesia continua para lá do símbolo, o crítico derrapa no instante da graça e estatela-se no lugar-comum.
Mas o lugar-comum tem pior fama do que aquela que merece. É preciso currículo para chegar a lugar-comum, começa-se sempre lá atrás, em terrenos incomuns, ou pelo menos pouco frequentados, depois o povoamento cresce, a paisagem torna-se conceito estável, o radical da origem desaparece. Os lugares-comuns sobre Herberto Helder não fogem a este itinerário. Foram terra (de novo) estranha — o lugar de origem pode ser a reincarnação de um lugar-comum que saiu de palco —, são agora o castelo que vigia esse vasto poema contínuo: ali o obscuro, mais além a alquimia, perto o terror, ao longe a beleza trágica, quase nunca a pessoa do autor, sempre a soberania autoral enquanto linguagem órfica.
Duas diferenças apenas, neste itinerário. A primeira é que desde cedo o discurso crítico sobre Herberto Helder se fez acompanhar de um gesto canónico que em resumo dizia isto: depois de Camões, Pessoa; depois de Pessoa, Herberto. Não discuto o regime de verdade desta asserção (que aliás subscrevo com a alegria irónica de toda a contingência), mas sublinho o sintoma em jogo: a ascensão ao cânone não decorre aqui da autoridade dos críticos, mas da resistência desta poesia a ser arrumada na contemporaneidade em curso. Esse indomesticável que se sente claramente na poesia herbertiana empurrou o crítico para o gesto canónico, naquele sentido de que o cânone é aquilo que o futuro lerá com olhos já completamente instruídos pela obra agora endossada.
A segunda diferença é que este itinerário é pautado por um diálogo sui generis com a crítica. Herberto Helder era um leitor atento dos seus intérpretes e teve a ironia e o gozo dos limites de, na sua própria poesia e apenas nela, trocar silenciosamente as voltas às conquistas da crítica — e com que aceitação de autoridade nos apressávamos a mostrar que não éramos “burrocratas”. É por isso que agora nos toma esta súbita orfandade e o crítico se descobre também mais mortal do que os outros animais. E dá à pata nos pedais para um verão interior.



                                                                                                                                         — Luís Mourão



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