O meu Herberto começou por ser o do coelacanto, o
que ensina o exercício radical da liberdade. Foi com passos em volta que entrei
na sua obra, impreparado como todos para o exercício preciso da violência, entendendo
que a vocação é tarefa que não se deveria escudar em desculpas. Deus, pátria,
família: desculpas para a potência que não temos coragem de confrontar. Depois
da lição ética, conheci a mestria poética, o encerramento sem fissuras do poema
(pelo menos até aos dois últimos volumes inéditos). Aquela particular
intransigência com a comunicabilidade (e por aqui vinca-se uma
diferença
insuperável, um abismo sobre o qual é impossível gritar, com a maior porção da
poesia contemporânea, que se contenta com ser um resíduo moderno), a repelência
do leitor que, no mesmo lance, o convoca – é uma poesia, em grande medida, que
pede teoria, que solicita um mediador, como sucede com a arte depois de
Duchamp. Herberto que escreveu porventura a melhor teoria sobre a modernidade
em língua portuguesa – photomaton & vox. E todavia na poesia herbertiana
conflui a injunção vanguardista, segundo a qual o mundo da arte carece de
energia e abunda de empedernida cultura, e a lição modernista da autotelia,
projecto que se levou a cabo resgatando a aura poética num tempo que a
esboroara, que enchera o mundo das suas ruínas, gesto heróico que desmentia o
mundo, o mercado, o reinvestia de sumptuosidade verbal, luxuosa, Herberto Helder, criador das últimas coisas, criador de mundo, a
metáfora herbertiana cria mundo, não o representa. O
efeito medusante faz parte desta senda da poesia – o leitor verá quanto mais
cego for, uma espécie particular de cognição, a poesia acorda as vísceras. Erigiu
Herberto um edifício poético compacto, expressão dessa desassossegada exaltação
de um mundo crescentemente profano. É nesse sentido profundamente anacrónico, a
poesia não é vida, as palavras não são energia, como laranjas devoradas até ao
mais fundo da carne, com aquela holderliniana respiração de fundas águas. Não é,
a poesia hoje apascenta-se em melancolia, concede narcisismos biográficos,
reconhece a irreversibilidade das ruínas, compadece-se da sua própria condição.
(E afinal – a poesia é tão insignificante como tudo.) Porém a noite de Herberto Helder far-nos-á
estremecer ainda, sem sabermos bem do quê, nostálgicos sem saber porquê, pelos
séculos fora.
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