27.3.15

Um erro das musas distraídas

 
O meu Herberto começou por ser o do coelacanto, o que ensina o exercício radical da liberdade. Foi com passos em volta que entrei na sua obra, impreparado como todos para o exercício preciso da violência, entendendo que a vocação é tarefa que não se deveria escudar em desculpas. Deus, pátria, família: desculpas para a potência que não temos coragem de confrontar. Depois da lição ética, conheci a mestria poética, o encerramento sem fissuras do poema (pelo menos até aos dois últimos volumes inéditos). Aquela particular intransigência com a comunicabilidade (e por aqui vinca-se uma
diferença insuperável, um abismo sobre o qual é impossível gritar, com a maior porção da poesia contemporânea, que se contenta com ser um resíduo moderno), a repelência do leitor que, no mesmo lance, o convoca – é uma poesia, em grande medida, que pede teoria, que solicita um mediador, como sucede com a arte depois de Duchamp. Herberto que escreveu porventura a melhor teoria sobre a modernidade em língua portuguesa – photomaton & vox. E todavia na poesia herbertiana conflui a injunção vanguardista, segundo a qual o mundo da arte carece de energia e abunda de empedernida cultura, e a lição modernista da autotelia, projecto que se levou a cabo resgatando a aura poética num tempo que a esboroara, que enchera o mundo das suas ruínas, gesto heróico que desmentia o mundo, o mercado, o reinvestia de sumptuosidade verbal, luxuosa, Herberto Helder, criador das últimas coisas, criador de mundo, a metáfora herbertiana cria mundo, não o representa. O efeito medusante faz parte desta senda da poesia – o leitor verá quanto mais cego for, uma espécie particular de cognição, a poesia acorda as vísceras. Erigiu Herberto um edifício poético compacto, expressão dessa desassossegada exaltação de um mundo crescentemente profano. É nesse sentido profundamente anacrónico, a poesia não é vida, as palavras não são energia, como laranjas devoradas até ao mais fundo da carne, com aquela holderliniana respiração de fundas águas. Não é, a poesia hoje apascenta-se em melancolia, concede narcisismos biográficos, reconhece a irreversibilidade das ruínas, compadece-se da sua própria condição. (E afinal – a poesia é tão insignificante como tudo.) Porém a noite de Herberto Helder far-nos-á estremecer ainda, sem sabermos bem do quê, nostálgicos sem saber porquê, pelos séculos fora.



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