4.5.13

Romance e perda de fé

Sempre ouvi dizer que o melhor Fellini é o a preto e branco. Apesar disso, falarei um pouco de E la nave va de Fellini, um falso documentário de 1983 que representa o funeral de uma célebre cantora de ópera durante um cruzeiro. Um grupo de amigos da artista far-lhe-á a derradeira homenagem, espalhando as cinzas dela na ilha Erimo, onde ela nasceu. Durante o filme, o drama vai-se acentuando, dado que os amigos vão partilhando memórias e progressivamente cedendo à melancolia. No momento mais pungente, quando as cinzas estão prestes a dissipar-se nas fragas, Fellini decide exibir os bastidores do filme: a câmara mostra-nos o cineasta sentado, vemos a agitação de perches, a iluminação, as movimentações habituais de câmaras e de técnicos durante as filmagens. Isto é, no momento mais tenso para o espectador, o cineasta diz-nos para termos calma, tudo não passa de um filme, de uma construção artificial, ficcional. O espectador, excessivamente próximo do filme, é forçado por Fellini a distanciar-se emocionalmente. Algo afim parece ocorrer no Bom Inverno de João Tordo. As constantes achegas do narrador, por vezes expostas em rodapé, desvendando o osso de qualquer narrativa, funcionam como (fracassadas?) advertências ao leitor, precavendo-o de que o thriller que se seguirá não passa de artifício, sendo o leitor colocado ab initio a uma sobre-distância do romance. Têm este efeito, mas não sei se a intenção por detrás delas era essa. Apenas depois do depoimento do narrador, que de acordo com o romance tradicional é omnisciente, é que o desenlace se poderá consumar (Bosco perseguindo Vincenzo). O thriller propriamente dito terá muito de escrita à la Dumas (com várias páginas com diálogos constituídos por falas sintéticas que por vezes parecem encher) e de deriva-Lost. Nada de novo, no que toca à ideia segundo a qual os que abordam a existência de uma forma mais distante, por vezes cínica, tornar-se-ão líderes em situações-limite como a que as personagens vivem em Sabaudia. Estar perdido numa ilha ou em Sabaudia dá no mesmo. A geografia da comuna italiana sugere contudo de forma ostensiva a ideia de algo recalcado, algo que foi empurrado para baixo mas que vai ressurgindo rebarbativamente: por um lado, a fé, escondida numa civilização individualista, voraz, precisa, técnica; por outro, o trauma que as personagens carregam. O conflito é a oportunidade para o ressurgimento da fé, que no passado se perdeu, na vida. E talvez todo o desequilíbrio gerado em qualquer romance não vise outro fim que não este. Por isso, O Bom Inverno diz não só do que é a perda da fé, mas também do que, arrisco dizê-lo, faz parte da essência do romance debelar, ou, quando menos, minorar: o ceticismo. Sem a perda de fé, o romance moderno não existiria, é ela o seu motor.


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